Entre Fraldas e Silêncios: O Preço de Ser Avó a Tempo Inteiro

— Mãe, só mais esta semana, por favor. A Leonor está cheia de trabalho e o Tiago tem testes — suplicava a minha filha, Inês, ao telefone, enquanto eu olhava para o relógio da cozinha, já a contar os minutos para o próximo biberão do pequeno Martim.

Nunca pensei que aos sessenta e cinco anos voltaria a acordar com o despertador às sete da manhã. Depois de uma vida inteira a trabalhar como professora primária em Almada, sonhava com manhãs preguiçosas na varanda, chávena de chá com limão na mão e um livro aberto no colo. Sonhava com passeios lentos pelo jardim do Príncipe Real, com tardes de conversa fiada com as amigas no café da esquina. Mas o destino, ou talvez a culpa materna, tinha outros planos para mim.

Tudo começou de forma inocente. A Inês voltou ao trabalho depois da licença de maternidade e pediu-me ajuda para ficar com o Martim e a Beatriz. “É só até encontrarmos uma creche boa”, disse ela. O meu genro, Rui, também parecia aliviado. “A mãe é um anjo, não sei como faríamos sem si.” Senti-me útil, necessária. Afinal, quem melhor do que eu para cuidar dos meus netos?

No início, até gostei. O cheiro doce dos bebés, os risos da Beatriz quando lhe contava histórias, o orgulho de ver o Martim dar os primeiros passos. Mas as semanas passaram e nada mudou. A creche nunca apareceu. Os pedidos tornaram-se exigências silenciosas. A minha casa encheu-se de brinquedos espalhados, fraldas sujas e papas entornadas. Os meus dias passaram a ser deles.

— Mãe, podes ficar mais um bocadinho? O Rui ficou preso no trânsito — dizia Inês quase todos os dias.

— Claro, filha — respondia eu, engolindo o cansaço.

O tempo para mim desapareceu. As minhas amigas deixaram de me ligar para os almoços de sexta-feira. “Sabemos que estás sempre ocupada com os netos”, diziam elas. Os livros acumularam pó na estante. O meu chá arrefecia esquecido na mesa da varanda.

Comecei a sentir-me invisível. Uma sombra na vida dos outros. Quando tentei falar com a Inês sobre o assunto, ela respondeu:

— Mãe, tu sempre disseste que família é tudo! Não percebo porque estás tão cansada. Nós precisamos de ti.

Senti uma pontada no peito. Era verdade: sempre lhes ensinei que família vinha antes de tudo. Mas ninguém me perguntou se eu ainda tinha sonhos próprios.

O Rui também não ajudava. Chegava tarde do trabalho e nem um “obrigado” me dizia. Limitava-se a pegar nos miúdos e a ligar a televisão.

Uma noite, depois de um dia especialmente difícil — Beatriz esteve doente e Martim fez birra o dia todo — sentei-me sozinha na cozinha e chorei baixinho. Senti-me egoísta por desejar outra vida. Senti raiva por ninguém reparar no meu esforço.

No domingo seguinte, durante o almoço de família, tentei abordar o assunto:

— Inês, Rui… Tenho pensado em inscrever-me num curso de pintura na Universidade Sénior. São só duas tardes por semana…

A Inês interrompeu-me:

— Mas mãe, quem vai ficar com as crianças? Não podes deixar-nos assim!

O Rui limitou-se a encolher os ombros.

Senti-me esmagada pela culpa e pela indiferença deles. Será que era errado querer um pouco de tempo só para mim?

Os dias seguintes foram um arrastar de rotinas exaustivas. Comecei a ter dores nas costas, a dormir mal. Uma manhã, ao olhar-me ao espelho, mal reconheci aquela mulher de olhar cansado e ombros caídos.

Foi então que decidi falar com o meu filho mais velho, o Pedro, que vive no Porto.

— Mãe, tens de pensar em ti também — disse ele ao telefone. — A Inês tem de perceber que não és uma ama gratuita.

As palavras dele ecoaram na minha cabeça durante dias.

Na semana seguinte, quando Inês me pediu para ficar mais uma vez até tarde, respirei fundo e respondi:

— Hoje não posso, filha. Preciso de descansar.

Ela ficou em silêncio do outro lado da linha.

— Mas mãe… E agora?

— Agora vocês vão ter de encontrar outra solução — disse eu, com a voz trémula mas firme.

Houve discussões. Houve lágrimas. Durante dias não me ligaram. Senti-me sozinha e culpada. Mas também senti um estranho alívio.

Comecei finalmente o curso de pintura. Fiz novas amigas. Voltei a ler os meus livros na varanda. Os netos continuam a ser uma alegria na minha vida — mas agora vêm visitar-me ao fim-de-semana, com os pais presentes.

Às vezes pergunto-me: será que fui egoísta? Ou será que finalmente aprendi a dizer “basta”? Quantas avós em Portugal vivem presas à ideia de que têm de sacrificar tudo pelos outros? E vocês? O que fariam no meu lugar?