Quando a porta bateu: O dia em que perdi a minha família

— Não posso mais, Miguel! Não posso! — gritava a Joana, com os olhos vermelhos de tanto chorar, enquanto arrastava a mala pelo corredor estreito do nosso apartamento em Almada.

O som da mala a raspar no chão misturava-se com o bater acelerado do meu coração. Eu estava parado, encostado à porta da cozinha, sem saber se devia implorar-lhe para ficar ou se devia simplesmente aceitar o inevitável. A nossa filha, Inês, de apenas cinco anos, agarrava-se à perna da mãe, os olhos arregalados de medo e confusão.

— Joana, por favor… — tentei, mas a voz saiu-me fraca, quase um sussurro. — Não faças isto. Podemos resolver…

Ela virou-se para mim, os lábios a tremerem de raiva e tristeza.

— Resolver? Tu só sabes prometer, Miguel! Prometes que vais mudar, prometer que vais procurar outro emprego, prometer que vais passar mais tempo connosco… Mas nada muda! Estou farta de viver assim. Farta!

As palavras dela cortaram-me como facas. Sabia que tinha razão. Desde que fui despedido do armazém há oito meses, tinha-me afundado numa rotina de desculpas e pequenos biscates mal pagos. O dinheiro mal chegava para pagar a renda e as contas acumulavam-se na gaveta da entrada. Joana trabalhava num café das sete às três e chegava sempre exausta. Eu prometia-lhe que ia encontrar algo melhor, mas todos os dias me sentia mais pequeno, mais inútil.

— Não vás — pedi de novo, agora quase a chorar. — Por favor, Joana. Pensa na Inês…

Ela baixou-se para pegar na nossa filha ao colo. Inês enterrou o rosto no pescoço da mãe e começou a soluçar baixinho.

— Eu já pensei nela — respondeu Joana, com uma calma assustadora. — É por ela que vou embora. Não quero que ela cresça a ver isto… a ver-nos assim.

O silêncio caiu pesado entre nós. Ouvia-se apenas o barulho dos carros lá fora e o tic-tac do velho relógio da sala. Joana abriu a porta e saiu sem olhar para trás. Fiquei ali parado, incapaz de me mexer, enquanto o som dos passos delas se afastava pelo corredor do prédio.

Quando finalmente consegui sair do torpor, sentei-me no sofá e enterrei a cara nas mãos. Senti-me esmagado pelo peso da solidão e do fracasso. Lembrei-me de todas as vezes em que prometi mudar e não mudei. De todas as discussões abafadas para não acordar a Inês. Dos jantares silenciosos em que cada um olhava para o prato como se fosse um estranho.

Os dias seguintes foram um borrão de dor e rotina. Levantava-me tarde, arrastava-me até ao café onde Joana trabalhava só para ver se conseguia falar com ela. Mas ela evitava-me, dizia apenas:

— Não é o momento, Miguel.

A minha mãe ligava todos os dias:

— Filho, tens de reagir! Vai atrás delas! Procura ajuda!

Mas eu sentia-me paralisado. O meu pai nunca foi de grandes conversas, mas nesse domingo apareceu lá em casa com uma garrafa de vinho barato.

— Sabes, Miguel… — começou ele, depois de um longo silêncio — quando a tua mãe ameaçou ir-se embora, eu também não quis ouvir. Achei que era só uma fase. Mas depois percebi que às vezes é preciso perder quase tudo para percebermos o que realmente importa.

Olhei para ele e vi nos olhos dele uma tristeza antiga, uma compreensão silenciosa.

— E agora? O que faço? — perguntei-lhe.

Ele encolheu os ombros.

— Vais atrás delas. E desta vez não prometes nada. Mostras.

Naquela noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto, a pensar em tudo o que tinha feito (e não tinha feito) nos últimos anos. Lembrei-me do dia em que conheci a Joana na praia da Costa da Caparica, do sorriso dela quando lhe pedi em casamento junto ao Tejo, das primeiras noites sem sono depois do nascimento da Inês. Como é que deixei tudo isso escapar?

No dia seguinte levantei-me cedo pela primeira vez em meses. Fui ao centro de emprego e inscrevi-me num curso de formação em eletricidade. Não era o trabalho dos meus sonhos, mas era um começo. Liguei à minha irmã Rita e pedi-lhe ajuda para organizar as contas e perceber como podia sair do buraco onde me tinha enfiado.

Durante semanas não vi a Joana nem a Inês. Sabia apenas que estavam em casa da mãe dela em Setúbal. Mandava mensagens à Joana todos os dias:

— Estou a tentar mudar. Não vou desistir de nós.

Ela raramente respondia. Quando respondia era seco:

— Preciso de tempo.

O tempo passou devagar. O curso era difícil mas dava-me uma rotina. Comecei a sentir-me útil outra vez. Um dia recebi uma mensagem da Joana:

— A Inês pergunta por ti. Queres vê-la este fim de semana?

O coração quase me saltou do peito. No sábado fui buscá-la ao portão da escola primária onde já estava inscrita em Setúbal. Ela correu para mim e abraçou-me com força.

— Papá! — gritou ela, com aquele sorriso desdentado que me derretia o coração.

Passei o dia com ela no parque da cidade. Brincámos às escondidas, demos pão aos patos e comemos gelados sentados num banco ao sol. Senti-me vivo pela primeira vez em muito tempo.

Quando levei a Inês de volta à casa da avó, Joana estava à porta à minha espera.

— Vieste mesmo — disse ela, surpreendida.

Assenti apenas.

— Estou a tentar ser melhor — disse-lhe baixinho.

Ela olhou para mim durante uns segundos longos demais.

— Espero mesmo que sim, Miguel. Porque eu não volto para trás.

Aquelas palavras ficaram-me gravadas na memória como uma sentença. Percebi ali que não podia mudar só por elas; tinha de mudar por mim também.

Os meses passaram e fui conseguindo pequenos trabalhos como eletricista. Consegui pagar algumas dívidas e até juntar algum dinheiro para comprar uma bicicleta usada à Inês no Natal. A relação com Joana foi melhorando devagarinho; já conseguíamos conversar sem gritar ou chorar.

Mas nunca mais voltámos a viver juntos. Ela arranjou um emprego melhor numa loja de roupa e alugou um pequeno apartamento só para ela e a Inês em Setúbal. Eu continuei em Almada, mas agora ia vê-las todos os fins de semana.

Às vezes ainda me pergunto se podia ter feito algo diferente para evitar tudo isto. Se tivesse ouvido mais cedo os avisos dela… Se tivesse pedido ajuda antes de perder tudo…

Hoje olho para trás e vejo um homem diferente daquele que era quando Joana bateu com a porta naquele dia fatídico. Aprendi que o amor não chega quando não há respeito nem esforço mútuo.

E vocês? Já sentiram que só perceberam o valor das pessoas quando as perderam? O que fariam diferente se pudessem voltar atrás?