Quando a Mãe Saiu de Casa: O Peso de Ser a Mulher da Família
— Mariana, não te esqueças: és tu que ficas responsável pelos teus irmãos e pelo teu pai. Não quero chegar e encontrar a casa de pernas para o ar! — A voz da minha mãe ecoava no corredor, enquanto ela fechava a mala com um estalido seco. O cheiro do perfume dela misturava-se com o aroma do café acabado de fazer, criando uma sensação estranha de despedida.
Olhei para o relógio da cozinha. Faltavam dez minutos para o táxi chegar. O meu padrasto, António, já estava à porta, impaciente, a verificar se tinha os bilhetes do avião. Os meus irmãos, Tiago e Miguel, fingiam que não ouviam nada, entretidos com os telemóveis. Eu sentia um nó no estômago. Tinha 22 anos, já era adulta, mas nunca tinha ficado sozinha com eles. A minha mãe sempre foi o pilar da casa — a cozinheira, a mediadora de conflitos, a que sabia onde estavam as meias perdidas e como acalmar as birras do meu pai.
— Mariana, ouviste o que eu disse? — insistiu ela, olhando-me nos olhos.
— Ouvi, mãe. Vai correr tudo bem — respondi, tentando sorrir.
Ela abraçou-me com força. Senti o coração dela bater acelerado. Talvez estivesse tão nervosa quanto eu.
Quando finalmente saíram, o silêncio caiu sobre a casa como um cobertor pesado. Sentei-me à mesa da cozinha e olhei para os meus irmãos.
— Então… alguém quer ajudar a preparar o almoço? — perguntei.
Tiago nem levantou os olhos do telemóvel. Miguel resmungou qualquer coisa ininteligível. Suspirei. Era assim que ia ser?
O primeiro dia passou devagar. O meu pai chegou tarde do trabalho, cansado e mal-humorado. Sentou-se à mesa sem dizer palavra. Preparei-lhe um prato de sopa e tentei puxar conversa.
— O dia correu bem?
Ele encolheu os ombros.
— O António não deixou as contas pagas. Tenho de ir amanhã ao banco — disse, como se fosse culpa minha.
Senti-me pequena. Lembrei-me das palavras da minha mãe: “Os homens da casa precisam de alguém que os organize”. Mas ninguém me ouvia. Ninguém queria ser organizado.
Naquela noite, ouvi Tiago a falar ao telefone no quarto dele. A voz dele estava tensa.
— Não posso sair hoje, pá! A minha irmã está aqui a fazer de polícia…
Fiquei magoada. Não queria ser polícia de ninguém. Só queria que tudo corresse bem até a mãe voltar.
No segundo dia, Miguel apareceu na cozinha com os olhos inchados.
— Mariana… posso faltar à escola hoje? Não me sinto bem…
Toquei-lhe na testa. Estava quente.
— Vou marcar consulta no centro de saúde — disse-lhe.
O meu pai resmungou quando soube que tinha de faltar ao trabalho para levar Miguel ao médico.
— Isto é tudo uma confusão sem a tua mãe cá — atirou ele, olhando-me como se eu fosse responsável pelo caos do mundo.
No centro de saúde, Miguel acabou por adormecer no meu colo enquanto esperávamos horas pela consulta. Olhei para ele e senti uma ternura imensa misturada com medo: será que algum dia conseguiria ser tão forte como a minha mãe?
À noite, Tiago apareceu na cozinha com um olhar estranho.
— Mariana… posso pedir-te uma coisa?
Assenti.
— Preciso de dinheiro para pagar uma dívida… Não digas nada à mãe.
Fiquei em choque. Tiago tinha 18 anos e nunca me tinha pedido nada assim.
— Que dívida?
Ele hesitou.
— Apostei num jogo online… perdi mais do que devia.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Tiago! Não podes continuar assim! A mãe vai ficar desiludida…
Ele baixou os olhos.
— Por favor…
Acabei por lhe dar parte das minhas poupanças. Não consegui dormir nessa noite. O peso da responsabilidade esmagava-me.
No terceiro dia, o meu pai chegou bêbado a casa. Atirou as chaves para cima da mesa e começou a gritar com os meus irmãos por causa da loiça suja.
— Isto é uma vergonha! Nem para lavar um prato servem!
Intervim:
— Pai, chega! Eu trato disso amanhã…
Ele olhou para mim com olhos vermelhos de raiva e cansaço.
— Tu não és tua mãe! Nunca vais ser!
As palavras dele cortaram-me como facas. Fugi para o quarto e chorei até adormecer.
No dia seguinte, acordei decidida a pôr ordem na casa. Preparei um pequeno-almoço reforçado e sentei-me com os meus irmãos à mesa.
— Vamos falar a sério: isto não pode continuar assim. Somos uma família, temos de nos ajudar uns aos outros. A mãe confiou em nós!
Tiago olhou-me nos olhos pela primeira vez em dias.
— Desculpa… Eu só queria resolver as coisas sozinho…
Miguel abraçou-me em silêncio.
O meu pai apareceu à porta da cozinha, ainda com ar cansado.
— Mariana… desculpa pelo que disse ontem — murmurou ele, sem me olhar diretamente nos olhos.
Senti um nó na garganta. Talvez todos estivéssemos perdidos sem a mãe.
Os dias seguintes foram melhores. Dividimos tarefas, rimos juntos ao jantar, vimos filmes antigos na sala como fazíamos quando éramos pequenos. Senti que estava finalmente a conseguir unir a família — mesmo que por pouco tempo.
Quando a minha mãe voltou, encontrou-nos sentados à mesa, a jogar cartas e a rir alto.
Ela olhou para mim com orgulho e surpresa.
— Mariana… conseguiste mesmo tomar conta dos homens da casa!
Sorri-lhe, mas por dentro sabia que tinha mudado para sempre. Tinha descoberto segredos dos meus irmãos, enfrentado o lado mais frágil do meu pai e percebido que ser mulher nesta família era muito mais do que cozinhar ou limpar: era ser ponte entre mundos diferentes, era ser força quando todos estavam fracos.
Agora pergunto-me: quantas Marianas existem por aí, a segurar famílias inteiras sem ninguém reparar? E será justo pedirem-nos tanto sem nunca perguntarem se estamos bem?