Porque Não Há Bacalhau, Mãe?

— Porque é que não há bacalhau, mãe? — A voz do Tiago cortou o silêncio da sala como uma faca afiada. O olhar dele, carregado de frustração, encontrou o meu, e por um segundo senti-me pequena, como se tivesse falhado em algo fundamental.

O António, sentado ao meu lado, fingiu não ouvir. Limitou-se a mexer no arroz com o garfo, os olhos postos na televisão desligada. O silêncio entre nós era tão pesado que quase sufocava. Eu sabia que o Tiago esperava aquela tradição: bacalhau à Brás ao domingo, como sempre fizera desde pequeno. Mas agora, com ele e a irmã a viverem fora, já não fazia sentido cozinhar panelas cheias de comida para dois.

— Tiago, já não somos tantos em casa — tentei explicar, a voz embargada. — Não faz sentido fazer bacalhau só para nós dois.

Ele bufou, largando o guardanapo na mesa. — Pois, agora já não interessa. Quando éramos pequenos havia sempre comida para todos. Agora parece que já não somos família.

As palavras dele doeram mais do que eu queria admitir. Senti um aperto no peito, uma mistura de raiva e tristeza. O António lançou-me um olhar rápido, como quem diz “deixa-o falar”, mas eu não conseguia ignorar.

— Não digas disparates, Tiago. A família continua aqui. Só mudou um bocadinho.

Ele levantou-se abruptamente. — Mudou? Mudou tudo! A mana nem sequer veio este Natal! E tu… tu já nem cozinhas como antes. — A porta do quarto bateu com força.

Fiquei ali sentada, olhando para os restos do jantar. O cheiro do arroz misturava-se com o vazio da casa. Lembrei-me dos tempos em que a mesa estava cheia: a Inês a rir-se alto das piadas do pai, o Tiago a pedir sempre “só mais um bocadinho” de sobremesa. Agora, só restavam pratos por lavar e silêncios por preencher.

O António pousou o garfo e suspirou. — Deixa-o estar, Maria. Ele também sente falta dos velhos tempos.

— E tu? — perguntei, sem conseguir esconder a mágoa. — Também sentes?

Ele encolheu os ombros. — Sinto falta do barulho… mas também sabe bem algum sossego.

Fiquei a olhar para ele, tentando perceber se era verdade ou se era só uma desculpa para não falar sobre o que realmente sentíamos. Desde que os miúdos saíram de casa, parecia que cada um de nós vivia numa ilha diferente, separados por um mar de rotinas e silêncios.

Naquela noite, não consegui dormir. Fiquei a ouvir os passos do Tiago no quarto ao lado, inquietos como os meus pensamentos. Lembrei-me da primeira vez que fiz bacalhau à Brás: a cozinha cheia de vapor, a Inês a ajudar-me a desfazer o bacalhau com as mãos pequenas e gordurosas. O António a provar o tempero e a dizer “falta sal” só para me provocar.

Agora, tudo isso parecia pertencer a outra vida.

No dia seguinte, tentei falar com o Tiago antes de ele sair para Lisboa. Ele estava apressado, com as malas na mão e os fones nos ouvidos.

— Tiago… — chamei baixinho.

Ele parou à porta, sem me olhar nos olhos.

— Desculpa por ontem — disse eu. — Só… às vezes custa-me perceber como tudo mudou tão depressa.

Ele hesitou um segundo antes de responder:

— Também me custa, mãe. Mas não podes esperar que tudo fique igual para sempre.

E saiu, deixando-me sozinha no corredor.

Durante dias pensei naquela frase: “não podes esperar que tudo fique igual para sempre”. Era verdade. Mas como é que se aprende a viver com isso?

O António começou a passar mais tempo fora de casa: ia jogar às cartas com os amigos do café ou dava longos passeios sozinho pelo bairro. Eu tentava ocupar-me: fazia tricô, lia romances antigos, mas nada preenchia aquele vazio.

Uma tarde, decidi ligar à Inês. Ela atendeu do Porto, a voz animada mas distante.

— Olá mãe! Está tudo bem?

— Está… está tudo bem — menti. — Só queria ouvir-te um bocadinho.

— Desculpa não ter ido no Natal… O trabalho estava impossível e depois o Miguel ficou doente…

— Eu sei, filha. Só tenho saudades vossas.

Ela ficou em silêncio uns segundos.

— Também tenho saudades tuas, mãe. Mas olha… tens de arranjar coisas para fazer! Vai ao teatro com o pai, ou viajem um bocadinho! Não fiquem aí fechados em casa.

Sorri, apesar das lágrimas nos olhos.

— Talvez tenhas razão.

Desliguei e fiquei a olhar para as fotografias na estante: os miúdos pequenos na praia da Nazaré, todos bronzeados e felizes; eu e o António no nosso casamento, tão jovens e cheios de sonhos; a família toda reunida à mesa no Natal de há dez anos atrás.

Nessa noite, quando o António chegou do café, desafiei-o:

— E se fôssemos passar um fim-de-semana fora? Só nós dois?

Ele olhou para mim surpreendido.

— Fora? Para onde?

— Sei lá… talvez ao Douro? Ou à Serra da Estrela? Nunca fomos só os dois desde que os miúdos nasceram.

Ele sorriu pela primeira vez em muito tempo.

— Pode ser uma boa ideia…

Começámos então a planear pequenas escapadelas. No início era estranho: parecia que faltava sempre alguém à mesa ou no carro. Mas aos poucos fomos redescobrindo conversas antigas, piadas esquecidas e até silêncios mais leves.

No entanto, nem tudo era fácil. Havia dias em que me sentia inútil: sem filhos para cuidar ou refeições grandes para preparar, perguntava-me qual era agora o meu papel. O António também tinha dias maus: ficava calado durante horas ou irritava-se por coisas sem importância.

Uma tarde chuvosa de domingo, enquanto arrumava as gavetas da cozinha, encontrei um caderno antigo da Inês cheio de desenhos e recados: “Mãe és a melhor cozinheira do mundo!”, “Adoro-te até à lua!” Sentei-me no chão frio e chorei baixinho. Senti falta daquele amor incondicional e simples.

Na semana seguinte decidi inscrever-me num curso de culinária na junta de freguesia. Queria aprender receitas novas — talvez encontrar outras razões para cozinhar além dos filhos. Conheci outras mulheres na mesma situação: mães sozinhas depois dos filhos saírem de casa, cada uma com as suas dores e saudades escondidas atrás de sorrisos tímidos.

Começámos a encontrar-nos todas as quartas-feiras para cozinhar juntas e conversar sobre tudo: maridos ausentes, netos que nunca vêm visitar, sonhos adiados por causa da família. Ali percebi que não estava sozinha na minha solidão.

Um dia levei ao António um prato novo: arroz de pato feito por mim e pelas minhas novas amigas. Ele provou e sorriu:

— Está delicioso! Devias convidar o Tiago e a Inês para virem cá jantar qualquer dia destes…

O coração bateu mais forte só de pensar nisso: voltar a ter os meus filhos à mesa nem que fosse só por uma noite.

Liguei-lhes logo nesse dia:

— Queria fazer um jantar cá em casa… só para matar saudades!

O Tiago hesitou mas acabou por aceitar; a Inês disse logo que sim e até trouxe o namorado novo.

Naquele sábado à noite senti-me viva outra vez: a casa cheia de vozes e risos; o cheiro da comida no ar; o António animado como há muito não via; os miúdos (já adultos) a discutir futebol como antigamente; eu a servir arroz de pato com orgulho renovado.

Quando todos foram embora fiquei sozinha na cozinha cheia de pratos sujos mas com o coração quente.

Afinal talvez seja isto ser mãe: aprender a deixar ir mas também saber receber de volta quando é possível.

Às vezes pergunto-me: será que algum dia deixamos mesmo de ser necessários? Ou será que mudamos apenas de papel sem nunca perdermos o nosso lugar na vida dos outros?