Por Trás do Sorriso: O Peso Invisível Que Carreguei

— Maria, tu nunca te queixas de nada, pois não? — perguntou a minha irmã Teresa, enquanto lavávamos a loiça depois do jantar de domingo. O cheiro do arroz de pato ainda pairava no ar, misturado com o riso das crianças na sala. Sorri-lhe, como sempre fazia, e limpei as mãos ao avental.

— Queixar para quê, Teresa? A vida é o que é — respondi, tentando esconder o cansaço na voz. Mas por dentro, sentia-me a desmoronar.

Ninguém via. Ninguém queria ver. Todos achavam que eu era a Maria forte, a Maria que aguenta tudo, a Maria que nunca perde o humor. Até o António, meu marido há trinta e cinco anos, dizia aos amigos: “A minha Maria é de ferro!”

Mas ferro também enferruja.

Lembro-me de uma noite em particular, há uns meses. Estava sentada à mesa da cozinha, já todos dormiam. O relógio marcava duas da manhã. Tinha as mãos pousadas na toalha de linho, herança da minha mãe. Olhei para elas — mãos calejadas, unhas curtas, pele seca. Mãos de quem trabalhou a vida inteira. E chorei. Chorei baixinho, para não acordar ninguém. Chorei por tudo o que perdi e por tudo o que nunca tive coragem de pedir.

A verdade é que sempre vivi para os outros. Para o António, para os meus filhos — o João e a Inês —, para os netos que agora enchem a casa de barulho e alegria. Para a minha mãe, quando ainda era viva, para o meu pai doente, para a vizinha Dona Amélia quando ficou viúva. E eu? Onde fiquei eu no meio disto tudo?

— Mãe, preciso de ti — dizia-me a Inês ao telefone quase todos os dias. — O Tomás está impossível, não dorme e eu já não sei o que fazer.

— Vai correr tudo bem, filha. Amanhã passo aí e fico com ele umas horas — respondia eu, mesmo sabendo que tinha prometido ao João ajudar com as compras e ao António preparar o jantar especial para os amigos dele.

Era sempre assim. Um malabarismo constante entre as necessidades dos outros e o silêncio das minhas próprias vontades.

O António nunca percebeu. Ou talvez nunca quis perceber. Depois de se reformar da Câmara Municipal, passou a estar mais tempo em casa. No início pensei que seria bom — finalmente teríamos tempo um para o outro. Mas ele tornou-se mais impaciente, mais exigente.

— Maria, onde estão as minhas meias? Maria, já fizeste o café? Maria, viste o comando da televisão?

E eu respondia sempre com um sorriso automático, mas por dentro gritava.

Houve um dia em que não aguentei mais.

— António, achas que sou tua empregada? — perguntei-lhe, com a voz trémula.

Ele olhou para mim surpreendido, como se nunca lhe tivesse passado pela cabeça que eu também pudesse cansar-me.

— Não digas disparates, mulher! Só estava a perguntar…

Mas não era só isso. Era tudo. Era o peso dos anos de silêncio, das noites mal dormidas ao lado de um homem que já não me via como mulher mas apenas como parte da mobília da casa.

A Teresa percebeu antes de todos.

— Maria, tu não estás bem — disse-me um dia, enquanto tomávamos café na varanda.

— Estou cansada, só isso — tentei desvalorizar.

— Não mintas para mim. Eu conheço-te desde sempre. Sabes que podes falar comigo.

Quis abrir-me com ela. Quis dizer-lhe tudo: o medo de envelhecer sozinha mesmo rodeada de gente; a sensação de ser invisível; a saudade de quando era apenas Maria e não “a mãe”, “a esposa”, “a avó” ou “a filha”. Mas calei-me outra vez.

A gota de água foi no aniversário do António. Preparei uma festa surpresa — convidei amigos antigos dele, fiz os pratos preferidos dele, organizei tudo ao pormenor. No fim da noite, ele levantou-se para agradecer:

— Quero agradecer à minha mulher por tudo isto. Ela é incansável!

Todos bateram palmas e sorriram para mim. Mas ninguém percebeu que eu só queria ouvir um “obrigado” sincero, um abraço apertado, um olhar cúmplice como antigamente.

Naquela noite dormi no sofá da sala. Não consegui voltar para a cama ao lado dele.

No dia seguinte, acordei com uma decisão tomada: precisava de mudar alguma coisa antes que fosse tarde demais.

Comecei devagarinho. Primeiro disse à Inês que não podia ir lá todos os dias.

— Mãe… estás zangada comigo? — perguntou ela, magoada.

— Não filha… só preciso de tempo para mim também.

O João estranhou quando recusei ajudá-lo com as contas do banco.

— Estás doente? — perguntou ele.

— Não filho… só quero descansar um pouco.

O António ficou perdido sem saber onde estavam as coisas dele. Teve de aprender a fazer café sozinho e até começou a ir às compras comigo ao mercado.

No início senti-me egoísta. Culpa misturada com alívio. Mas aos poucos fui sentindo outra coisa: liberdade.

Comecei a caminhar sozinha pela praia ao fim da tarde. Inscrevi-me numa aula de pintura na Junta de Freguesia. Fiz novas amigas — mulheres como eu, cansadas de serem invisíveis nas suas próprias casas.

Uma tarde sentei-me com a Teresa no jardim e contei-lhe tudo.

— Sempre pensei que era feliz porque todos diziam isso… mas nunca me perguntei se era mesmo — confessei-lhe.

Ela apertou-me a mão e chorámos juntas.

Hoje olho para trás e vejo quantos anos vivi em função dos outros sem nunca me perguntar o que queria realmente para mim própria. Não culpo ninguém — cada um faz o melhor que sabe com aquilo que tem. Mas gostava que alguém tivesse perguntado: “Maria, estás mesmo feliz?”

Agora sou eu quem faz essa pergunta todos os dias ao espelho.

E vocês? Quantas vezes já se perguntaram se são realmente felizes… ou apenas vivem para corresponder às expectativas dos outros?