O Silêncio de Tiago: Entre o Medo e a Esperança
— Não podes simplesmente ignorar, Marta! — gritei, com a voz embargada, enquanto olhava pela janela da cozinha para o parque vazio. O vento frio de novembro fazia as folhas dançarem em círculos, mas o que me prendia era a imagem daquele rapazinho, Tiago, sentado sozinho no baloiço, os olhos perdidos no chão.
Ricardo entrou na cozinha, largando as chaves com um suspiro cansado. — Outra vez esse miúdo? — perguntou, sem sequer me olhar nos olhos. — Já te disse que não podemos resolver todos os problemas do mundo.
Mas eu não conseguia afastar a imagem de Tiago da minha cabeça. Tinha-o visto ali todos os dias da última semana, sempre sozinho, sempre calado. Uma vez tentei aproximar-me:
— Olá, como te chamas?
Ele hesitou antes de responder, a voz quase inaudível: — Tiago.
— Estás à espera de alguém?
Ele abanou a cabeça. O silêncio dele era um grito abafado. Fiquei ali, sentada ao lado dele, sentindo o peso daquela solidão.
Nessa noite, enquanto jantávamos em silêncio, não consegui conter-me:
— Ricardo, não é normal uma criança estar tantas horas sozinha no parque. Já viste como ele está sempre com a mesma roupa? E nunca vi ninguém vir buscá-lo.
Ricardo largou os talheres. — Marta, temos os nossos próprios problemas. O meu contrato na empresa acaba este mês e tu sabes como está o mercado. Não podemos meter-nos em mais confusões.
Mas eu já estava envolvida. No dia seguinte, levei-lhe um pão com queijo e um sumo. Ele aceitou com um sorriso tímido. Sentei-me ao lado dele e tentei puxar conversa:
— Os teus pais trabalham por aqui?
Ele encolheu os ombros. — A minha mãe… às vezes vem tarde.
O olhar dele era vazio, como se já tivesse desistido de esperar por alguém. Senti uma dor aguda no peito. Lembrei-me da minha infância em Setúbal, quando a minha mãe trabalhava em dois empregos e eu ficava horas à janela à espera que ela voltasse.
Naquela noite, não consegui dormir. O rosto de Tiago perseguia-me nos sonhos. Levantei-me e fui até à sala onde Ricardo via televisão.
— Não consigo ignorar isto. Amanhã vou falar com a assistente social da junta.
Ricardo olhou-me com exasperação. — Vais meter-te numa alhada. E se a mãe dele for problemática? E se nos acusarem de alguma coisa?
— Prefiro arriscar do que fingir que não vejo.
No dia seguinte, fui à junta de freguesia. A assistente social ouviu-me com atenção, mas o olhar dela era cansado.
— Marta, temos muitos casos assim. As famílias estão cada vez mais desestruturadas. Mas prometo que vou averiguar.
Durante dias não vi Tiago no parque. O vazio do baloiço parecia um presságio. Comecei a duvidar de mim própria: teria feito bem? E se tivesse piorado as coisas?
Uma semana depois, ao regressar do supermercado, vi-o novamente. Estava mais magro e tinha uma nódoa negra no braço.
— Tiago! — corri até ele. — O que aconteceu?
Ele olhou para mim com medo nos olhos. — Não posso falar…
O meu coração apertou-se. Liguei à assistente social imediatamente. Dessa vez, ela foi rápida. No dia seguinte, Tiago foi levado para uma casa de acolhimento.
A casa ficou estranhamente silenciosa depois disso. Ricardo tentava animar-me:
— Fizeste o que podias. Agora está nas mãos deles.
Mas eu sentia-me vazia. Comecei a visitar Tiago na instituição sempre que podia. Aos poucos, ele foi abrindo o coração:
— A minha mãe… às vezes batia-me quando estava zangada. Mas eu gostava dela na mesma.
As palavras dele eram facas no meu peito. Senti uma raiva surda contra o mundo, contra as injustiças que pareciam nunca ter fim.
Os meses passaram e fui-me envolvendo cada vez mais na vida de Tiago. Ricardo começou a afastar-se:
— Já não falamos de nós. Só falas desse miúdo!
— Ele precisa de mim! — respondi, lágrimas nos olhos.
— E eu? Eu não preciso?
O casamento começou a ruir sob o peso do silêncio e das discussões adiadas. Uma noite, Ricardo fez as malas.
— Não aguento mais esta casa vazia de nós.
Fiquei sozinha com o eco das suas palavras e o vazio da casa. Mas não conseguia desistir de Tiago.
Um dia, a diretora da instituição chamou-me:
— Marta, Tiago perguntou se podia passar um fim-de-semana consigo.
O coração saltou-me no peito. Preparei tudo como se fosse Natal: fiz arroz doce como a minha avó fazia e comprei-lhe um pijama novo.
Quando ele chegou, olhou para mim com aqueles olhos grandes e assustados:
— Posso mesmo ficar?
— Podes tudo o que quiseres aqui em casa.
Nessa noite, adormeceu no sofá com um sorriso nos lábios. Sentei-me ao lado dele e chorei baixinho.
Os meses seguintes foram uma montanha-russa: visitas ao tribunal, entrevistas com psicólogos, relatórios sociais intermináveis. Ricardo ligava de vez em quando:
— Ainda achas que valeu a pena?
Eu olhava para Tiago a brincar no jardim e sabia que sim.
Finalmente chegou o dia da decisão judicial. O juiz olhou para mim por cima dos óculos:
— Está consciente da responsabilidade que está a assumir?
— Estou sim, senhor doutor juiz.
Tiago agarrou-me na mão com força.
Quando saímos do tribunal, ele olhou para mim:
— Agora sou mesmo teu filho?
Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto enquanto o abraçava:
— Agora és meu filho para sempre.
Hoje olho para trás e vejo tudo o que perdi: um casamento desfeito, noites sem dormir, amigos que se afastaram porque não compreendiam a minha escolha. Mas também vejo tudo o que ganhei: o sorriso de Tiago todas as manhãs, os abraços apertados antes de dormir, a esperança renovada de que um gesto pode mesmo mudar uma vida.
Às vezes pergunto-me: quantos Tiagos continuam invisíveis à nossa volta? E se todos nós tivéssemos coragem para ver — e agir? O que mudaria nas nossas vidas e nas deles?