Ninho Vazio, Esperanças que Persistem: A Solidão de uma Mãe Portuguesa
— Mãe, não podes continuar assim! — A voz da Inês ecoou pelo telefone, carregada de impaciência e preocupação. — Tens de sair de casa, conhecer pessoas, fazer alguma coisa!
Sentei-me na ponta da cama, o telemóvel trémulo nas mãos. O quarto parecia maior desde que o António levou as últimas caixas para Lisboa. O silêncio era tão denso que quase conseguia ouvi-lo respirar. Olhei para a fotografia dos meus filhos na cómoda: Inês, com o sorriso aberto do pai, e António, sempre sério, mas com aquele brilho nos olhos que só mostrava quando se sentia seguro.
— Inês, filha, eu sei… mas não é fácil — respondi, tentando esconder o nó na garganta. — Esta casa foi feita para vocês. Agora… parece que tudo perdeu o sentido.
Ela suspirou do outro lado. — Eu volto no fim de semana, prometo. Mas tens de tentar, mãe. Por mim. Por ti.
Desliguei e fiquei ali, sentada, a olhar para as paredes brancas. Lembrei-me do tempo em que a casa era um caos: brinquedos espalhados, risos a ecoar pelas divisões, discussões sobre quem ficava com o último pedaço de bolo. Agora, até o relógio da cozinha parecia bater mais devagar.
O Manuel, meu vizinho do lado, apareceu à porta pouco depois das dez. Batidas curtas e ritmadas — já sabia que era ele antes mesmo de abrir.
— Dona Rosa, trouxe-lhe pão fresco da padaria — disse ele, sorrindo com aquele jeito tímido de quem não quer incomodar.
— Obrigada, Manuel. Entre, faça-me companhia um bocadinho.
Sentámo-nos à mesa da cozinha. Ele falava das novidades do bairro: a Dona Amélia que caiu e partiu o braço, o novo supermercado que ia abrir na rotunda. Eu ouvia, mas a minha cabeça estava longe. Pensava em como era estranho depender agora de um vizinho para pequenas coisas — ir à farmácia, trazer pão, trocar uma lâmpada.
— Sabe, Dona Rosa — disse ele de repente — devia aceitar o convite da Junta para ir ao centro de dia. Faz-lhe bem sair daqui.
Sorri sem vontade. — Não sei se tenho forças para isso, Manuel.
Ele pousou a mão sobre a minha com delicadeza. — Tem sim. Só precisa de acreditar.
Depois que ele saiu, fiquei sozinha outra vez. O cheiro do pão fresco misturava-se com a saudade. Fui até à sala e sentei-me na poltrona onde costumava ler histórias aos meus filhos. Peguei num livro antigo e abri ao acaso:
“A vida é feita de partidas e regressos.” Li em voz alta e senti as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto.
À noite, tentei ligar ao António. Chamou até cair na caixa postal. Mandei-lhe uma mensagem: “Filho, está tudo bem? Sinto tua falta.” Fiquei à espera de resposta até adormecer no sofá.
No dia seguinte, acordei com o som do telemóvel a vibrar. Era uma mensagem do António: “Desculpa mãe, tenho trabalhado muito. Prometo ligar logo à noite.” Senti um misto de alívio e tristeza. Era sempre assim: promessas adiadas, conversas apressadas entre reuniões e compromissos.
Decidi ir até ao jardim. As roseiras estavam cheias de ervas daninhas. Peguei na enxada com dificuldade — as articulações já não eram as mesmas — mas insisti. Cada puxão era uma luta contra o tempo e contra mim própria. Lembrei-me de quando o António me ajudava a plantar flores aos domingos.
— Mãe, esta vai ser a minha rosa! — dizia ele, orgulhoso.
Agora as rosas eram só minhas. E as ervas daninhas também.
Ao fim da tarde, ouvi vozes na rua. Era a Inês com o namorado novo — o Rui — vieram trazer-me compras e ficar um pouco comigo.
— Mãe, tens de conhecer o Rui! Ele é engenheiro civil — disse ela, animada.
O Rui cumprimentou-me com respeito, mas percebi nos olhos dele um certo desconforto. Talvez achasse estranho aquela casa tão grande para uma só pessoa.
Sentámo-nos à mesa e tentei sorrir, mas a conversa era superficial: trabalho, trânsito em Lisboa, planos para férias no Algarve.
— E tu mãe? O que tens feito? — perguntou Inês.
Olhei para ela e senti vontade de gritar: “Tenho sobrevivido!” Mas limitei-me a dizer:
— Tenho cuidado do jardim… e falado com o Manuel.
Ela trocou um olhar rápido com o Rui. Senti-me pequena.
Depois do jantar foram-se embora apressados. Fiquei à porta a vê-los afastar-se no carro novo dele. O silêncio voltou a cair sobre mim como um manto pesado.
Nessa noite sonhei com o passado: os natais cheios de gente, os aniversários barulhentos, as discussões por causa das notas da escola. Acordei sobressaltada com saudades do que já não volta.
Os dias seguintes arrastaram-se iguais: pequenas tarefas domésticas, idas ao médico acompanhada pelo Manuel, telefonemas curtos dos filhos sempre ocupados.
Um dia recebi uma carta da Junta de Freguesia: convidavam-me para participar num grupo de leitura no centro comunitário. Hesitei durante dias até que o Manuel me convenceu:
— Dona Rosa, se não tentar nunca vai saber se gosta.
Na primeira sessão quase não falei. As outras senhoras pareciam tão à vontade… Mas aos poucos fui-me soltando. Partilhei histórias dos meus filhos em pequenos detalhes: como a Inês adorava ler antes de dormir; como o António fazia birra para não ir à escola.
Comecei a sentir menos peso nos ombros. O Manuel passou a ir comigo ao centro comunitário e até fizemos novos amigos: a Dona Teresa que perdeu o marido há dois anos; o Sr. Joaquim que nunca teve filhos mas trata todos como netos.
Certa tarde recebi uma chamada inesperada do António:
— Mãe… posso passar aí este fim de semana? Preciso falar contigo.
O coração disparou no peito. Passei os dias seguintes a preparar tudo: fiz o prato preferido dele, limpei cada canto da casa como se fosse receber um rei.
Quando chegou, percebi logo que algo não estava bem. Sentou-se à mesa em silêncio e olhou-me nos olhos:
— Mãe… vou emigrar para França. É uma oportunidade única… mas vou sentir muito a tua falta.
Senti o chão fugir-me dos pés. Tentei sorrir por ele mas por dentro estava desfeita.
— Filho… se é isso que queres… eu apoio-te. Só quero que sejas feliz.
Ele abraçou-me com força e chorámos juntos pela primeira vez em muitos anos.
Depois daquela visita tudo mudou dentro de mim. Percebi que os filhos não são nossos para sempre; são do mundo. A casa continuou vazia mas eu já não me sentia tão sozinha. Tinha amigos novos, pequenas rotinas e esperança renovada de que cada reencontro seria ainda mais especial.
Às vezes ainda me pergunto: será que algum dia voltarei a ouvir os risos deles ecoar nestas paredes? Ou será que preciso aprender a encontrar alegria nos silêncios também?