Nem Todos Têm Uma Vida de Conforto: A História de Sofia
— Não aguento mais, mãe! — gritou o Miguel ao telefone, a voz embargada de frustração e cansaço. — A Mariana está sempre a chorar, o banco já ameaçou cortar-nos a luz, e eu… eu não sei o que fazer.
Oiço o choro abafado do meu neto mais novo ao fundo. Oiço também o silêncio pesado da minha casa, onde vivo sozinha desde que o António morreu. Sinto um aperto no peito, uma mistura de culpa e impotência. Miguel é o meu filho mais velho, sempre tão responsável, tão orgulhoso. Nunca imaginei vê-lo assim, despedaçado.
A Mariana, a minha nora, era professora primária. Tinha regressado ao trabalho depois da licença de maternidade do segundo filho, mas pouco depois descobriu que estava grávida outra vez. O choque foi grande. Não era suposto. O Miguel tinha acabado de conseguir um emprego melhor numa empresa de informática em Lisboa, e finalmente tinham comprado a casa dos sonhos em Almada. Tudo parecia encaminhado.
Mas a vida não espera pelos nossos planos. A Mariana teve de ficar em casa, sem salário. O Miguel ficou sozinho a pagar a hipoteca, as contas, as fraldas, a comida. E eu… eu tentava ajudar como podia, mas a minha reforma mal dava para mim.
— Mãe, podes ficar com as crianças amanhã? — pediu ele um dia, já sem esperança na voz. — Preciso de ir trabalhar ao sábado para ganhar horas extra.
— Claro que sim, filho — respondi sem hesitar, mesmo sabendo que as minhas costas já não aguentam correr atrás de três crianças pequenas.
No dia seguinte, Mariana apareceu à porta com olheiras profundas e um sorriso forçado.
— Desculpe, Sofia… Eu sei que é muito trabalho para si…
— Mariana, somos família. Não tens de pedir desculpa.
Ela baixou os olhos e entrou em casa. Senti vontade de lhe dar um abraço apertado, mas havia uma distância entre nós que nunca consegui atravessar completamente. Talvez porque ela sentisse que eu a julgava por não conseguir voltar ao trabalho. Talvez porque eu própria sentisse inveja da juventude dela, da esperança que ainda não tinha sido esmagada pela vida.
As crianças correram para o quintal e eu sentei-me com Mariana na cozinha.
— Já pensaste em pedir ajuda à tua mãe? — perguntei baixinho.
Ela suspirou.
— A minha mãe está pior do que nós… O meu pai ficou desempregado e ela agora faz limpezas para pagar as contas.
Ficámos em silêncio. Oiço o riso das crianças lá fora e penso em como tudo era mais simples quando os meus filhos eram pequenos. Não havia tanto medo do futuro. Não havia tanta solidão.
À noite, depois de todos irem embora, sentei-me no sofá com uma chávena de chá e deixei as lágrimas correrem. Senti-me inútil. Senti raiva do mundo por ser tão injusto com quem só quer viver com dignidade.
Os meses passaram e a situação só piorou. O Miguel começou a chegar tarde a casa, exausto e irritado. A Mariana fechou-se numa tristeza profunda. As crianças começaram a adoecer com frequência — constipações atrás de constipações — e eu sentia-me cada vez mais impotente.
Um dia, durante um jantar de domingo em minha casa, tudo explodiu.
— Isto não pode continuar assim! — gritou Mariana, largando os talheres na mesa. — Eu não sou só mãe! Eu preciso de trabalhar! Preciso de ser eu!
O Miguel levantou-se abruptamente.
— E achas que eu não preciso? Achas que é fácil para mim?
As crianças começaram a chorar. Eu tentei acalmar todos, mas ninguém me ouvia.
— Vocês precisam de ajuda — disse finalmente, com firmeza. — Não podem continuar assim.
O Miguel olhou para mim com olhos vermelhos.
— E quem nos vai ajudar, mãe? O Estado? Os amigos? Já ninguém quer saber…
Senti-me esmagada pelo peso das expectativas deles e pela minha própria incapacidade de resolver tudo. Mas sabia que não podia desistir deles.
Na semana seguinte fui ao centro social da freguesia pedir informações sobre apoios para famílias numerosas. Fui à igreja pedir ao padre Joaquim para incluir o nome deles na lista das cestas básicas. Falei com a vizinha do lado sobre possíveis trabalhos em part-time para a Mariana fazer em casa.
A Mariana começou a costurar para fora — fazia máscaras de tecido e aventais para vender no mercado local. Não era muito dinheiro, mas era alguma coisa. O Miguel continuava a trabalhar horas intermináveis, mas pelo menos já não se sentia tão sozinho na luta.
Um dia, ao buscar os miúdos à escola, ouvi um grupo de mães a cochichar:
— Olha ali vai a Mariana… Dizem que o marido dela está cheio de dívidas…
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Porque é que as pessoas são tão rápidas a julgar? Porque é que ninguém vê o esforço diário desta família?
À noite liguei à Mariana.
— Não ligues ao que dizem — disse-lhe. — Só tu sabes o que passas todos os dias.
Ela chorou no telefone durante minutos intermináveis.
— Obrigada por nunca me julgar, Sofia…
Nesse momento percebi que talvez tivesse sido demasiado dura com ela no passado. Que talvez todas as mães e noras carreguem fardos invisíveis umas das outras.
O tempo foi passando e as coisas melhoraram devagarinho. O Miguel conseguiu renegociar o empréstimo da casa; a Mariana arranjou um part-time numa loja do bairro quando o bebé começou a ir ao infantário; as crianças cresceram saudáveis e felizes apesar das dificuldades.
Mas nunca esquecerei aqueles meses em que tudo parecia desmoronar-se à nossa volta. Em que cada pequeno gesto de bondade era uma tábua de salvação num mar revolto.
Agora olho para trás e pergunto-me: quantas famílias vivem assim todos os dias em silêncio? Quantas Sofias há por aí a tentar segurar tudo sem nunca pedir nada em troca? Será que algum dia aprendemos mesmo a pedir ajuda antes de ser tarde demais?