Entre Paredes Rachadas e Silêncios Gritantes: O Sonho Que Se Desfez
— Leonor, por favor, não faças isso outra vez! — gritei, a voz embargada, enquanto via a minha filha de seis anos a atirar os brinquedos contra a parede descascada da sala. O som ecoou pela casa, misturando-se com o estalar do reboco velho que caía do teto. Senti o peito apertar-se, como se cada fragmento daquela parede fosse um pedaço do meu sonho a desmoronar.
Quando era miúda, imaginava-me rodeada de filhos, numa casa cheia de luz e risos. Os meus pais, Maria e António, sempre me diziam que a felicidade estava nas pequenas coisas: um jantar em família, um passeio ao domingo, o cheiro do pão quente pela manhã. Cresci a acreditar nisso. Mas ninguém me avisou que as pequenas coisas também podiam ser pequenas tragédias diárias.
A casa que comprámos — eu e o Miguel — parecia perfeita nas fotografias do anúncio. Um jardim minúsculo mas cheio de potencial, paredes brancas e janelas grandes. Mas quando entrámos pela primeira vez, já com Leonor ao colo e as malas na mão, percebi que as fotografias mentem. O chão rangia a cada passo, havia manchas de humidade no teto e o cheiro a mofo era impossível de ignorar.
— Isto resolve-se com uma pintura — disse o Miguel, tentando sorrir. Mas eu vi nos olhos dele o mesmo medo que sentia no meu peito. Não tínhamos dinheiro para obras. Mal tínhamos para as contas do mês.
Os primeiros meses foram um teste à minha sanidade. Leonor chorava todas as noites. Eu passava horas sentada ao lado da cama dela, sussurrando canções de embalar enquanto ela gritava por um pai que chegava sempre tarde demais. Miguel trabalhava num restaurante em Lisboa; saía antes do sol nascer e voltava quando já só restava silêncio na casa.
— Não consigo mais — confessei-lhe uma noite, depois de mais uma discussão sobre as contas da luz e as infiltrações na cozinha. — Sinto-me sozinha nesta casa. Sinto que estou a falhar como mãe.
Ele olhou para mim, cansado, os olhos vermelhos de exaustão.
— Achas que isto é fácil para mim? Estou a dar tudo o que posso! — respondeu, a voz mais alta do que queria. — Mas parece que nada chega para ti.
Ficámos em silêncio. Ouvia-se apenas o tique-taque do relógio da sala e o som distante dos carros na estrada nacional.
No dia seguinte, Leonor fez birra porque não queria ir à escola. Atirou-se ao chão da cozinha, sujando-se toda na água que escorria da torneira partida.
— Odeio esta casa! — gritou ela, os olhos cheios de lágrimas.
Senti-me esmagada por aquela frase. Era como se ela tivesse dito: “Odeio-te”. E talvez fosse verdade. Eu própria começava a odiar-me por não conseguir dar-lhe aquilo que prometi a mim mesma quando era criança.
As semanas passaram e as paredes da casa continuaram a rachar. O jardim tornou-se um matagal porque não tinha tempo nem forças para cuidar dele. O cão que sonhei nunca chegou a existir; mal conseguíamos alimentar-nos a nós próprios.
A relação com o Miguel foi-se desgastando. As conversas resumiam-se a listas de compras e contas por pagar. Às vezes, olhava para ele e via um estranho sentado à mesa da cozinha.
— Lembras-te de quando éramos felizes? — perguntei-lhe uma noite, enquanto arrumava os pratos.
Ele encolheu os ombros.
— Não sei se alguma vez fomos felizes ou se só estávamos distraídos com os sonhos.
As palavras dele ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Comecei a evitar os espelhos porque não queria ver o rosto cansado e envelhecido que me devolviam.
Certa tarde, recebi uma chamada da minha mãe.
— Filha, tens estado tão calada… Está tudo bem?
Quis dizer-lhe tudo: o medo de falhar, o cansaço, a raiva surda que sentia por dentro. Mas limitei-me a responder:
— Está tudo bem, mãe. Só estou cansada.
Ela percebeu o silêncio nas minhas palavras e insistiu em vir visitar-nos no fim de semana seguinte.
Quando chegou, trouxe um bolo de laranja e um ramo de flores do quintal dela. Leonor correu para os braços da avó como se tivesse encontrado um porto seguro no meio da tempestade.
— A menina está tão magrinha… — comentou a minha mãe, olhando para mim com preocupação disfarçada.
Senti vergonha. Vergonha por não conseguir ser a mãe que queria ser. Vergonha por não conseguir manter a casa limpa ou o casamento feliz.
Nessa noite, depois do jantar, sentei-me no jardim com a minha mãe.
— Mãe… às vezes penso em fugir — confessei-lhe, baixinho.
Ela pousou a mão sobre a minha.
— Fugir para onde? Os problemas vão atrás de ti se não os enfrentares.
Chorei baixinho, sem forças para discutir. Ela ficou ali comigo até o frio nos obrigar a entrar.
No dia seguinte, Miguel chegou mais cedo do trabalho. Encontrou-me sentada no chão da sala, rodeada pelos brinquedos partidos da Leonor.
— O que é que aconteceu aqui? — perguntou ele, assustado.
— Nada… só estou cansada — repeti pela milésima vez.
Ele ajoelhou-se ao meu lado e abraçou-me pela primeira vez em meses. Chorámos juntos, sem palavras. Pela primeira vez em muito tempo senti que não estava completamente sozinha.
Começámos lentamente a reconstruir-nos. Não foi fácil. Fomos pedir ajuda à assistente social da junta de freguesia; ela arranjou-nos apoio psicológico e um subsídio para pequenas obras urgentes na casa. A Leonor começou a ter acompanhamento na escola para lidar com as birras e as dificuldades de adaptação.
A casa continua velha e cheia de remendos, mas já não me parece tão hostil. O jardim ainda é um matagal, mas agora vejo nele potencial para recomeçar — talvez plantar flores com Leonor na primavera.
O Miguel e eu ainda discutimos por coisas pequenas: quem esqueceu de comprar leite ou quem deixou as luzes acesas. Mas também aprendemos a pedir desculpa e a rir das nossas próprias falhas.
Às vezes olho para trás e pergunto-me: onde ficou aquele sonho de infância? Será que alguma vez existiu ou foi só uma ilusão criada pelas histórias dos outros?
Hoje sei que o amor não é feito de casas perfeitas nem de famílias sem problemas. O amor é isto: continuar mesmo quando tudo parece ruir à nossa volta.
E vocês? Já sentiram que estavam a perder-se dentro dos vossos próprios sonhos? Como encontraram forças para recomeçar?