Entre Panelas e Silêncios: O Aniversário de Vicente
— Outra vez arroz de pato, Aria? — A voz da Dona Lurdes cortou o ar da cozinha como uma faca cega, arrastando consigo o peso de anos de olhares atravessados e sorrisos forçados.
A colher tremeu-me na mão. O cheiro do refogado misturava-se ao suor frio que me escorria pelas costas. Olhei para o relógio: faltavam vinte minutos para a chegada do resto da família do Vicente. Mais um aniversário, mais uma invasão. E eu, sempre a anfitriã involuntária, sempre a cozinheira invisível.
Vicente entrou na cozinha, sorrindo com aquele ar despreocupado que só ele conseguia manter nestas alturas. — Precisas de ajuda, amor?
Quis gritar. Quis dizer-lhe que precisava de muito mais do que ajuda: precisava de respeito, de reconhecimento, de um gesto mínimo da parte dele ou da família dele. Mas limitei-me a sorrir e a dizer:
— Está tudo controlado.
Ele beijou-me a testa e saiu, deixando-me sozinha com os meus pensamentos e com Dona Lurdes, que já começava a inspecionar os tabuleiros como se procurasse defeitos.
— No meu tempo, as mulheres não se queixavam tanto — murmurou ela, mexendo no arroz com o garfo.
Engoli em seco. No meu tempo, pensei eu, as mulheres também tinham sonhos. Mas aqui estava eu, a viver o pesadelo anual de cozinhar para vinte pessoas que nunca me agradeceram.
Este ano, porém, decidi fazer diferente. Não haveria arroz de pato para todos. Preparei uma mesa simples, com petiscos tradicionais: chouriço assado, pão caseiro, queijo da serra e uma salada fresca. Queria sentar-me à mesa com eles, rir, brindar ao Vicente. Queria sentir-me parte da celebração e não apenas a empregada.
Quando os primeiros convidados chegaram — os primos barulhentos, as tias críticas — percebi logo que algo estava fora do esperado. Olhares trocados, sussurros abafados.
— Então este ano não há bacalhau? — perguntou o tio Armando, já com um copo de vinho na mão.
— Não há arroz de pato? — repetiu a prima Sílvia, franzindo o nariz.
Vicente tentou desanuviar:
— A Aria quis inovar este ano. Vamos experimentar coisas novas!
Mas ninguém pareceu convencido. Sentaram-se à mesa como quem se senta num velório. Os risos eram forçados, as conversas arrastadas. Senti o peso dos olhares sobre mim cada vez que me levantava para ir buscar mais pão ou encher os copos.
No meio do jantar, Dona Lurdes levantou-se e foi até à cozinha. Segui-a em silêncio.
— Não percebo esta mania de mudar o que está bem — disse ela, abrindo o frigorífico à procura de algo mais substancial. — O Vicente sempre gostou do teu arroz de pato. Porquê mudar?
Respirei fundo antes de responder:
— Porque eu também faço parte desta família. E queria sentar-me à mesa convosco, celebrar com vocês.
Ela olhou-me como se eu tivesse dito um disparate.
— As mulheres da nossa família sempre serviram primeiro. É assim que se mostra amor.
Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Amor? Era isso que chamavam a esta obrigação sufocante?
Quando voltámos à sala, o ambiente estava ainda mais pesado. O tio Armando já resmungava alto:
— No tempo da minha mãe é que era! Havia comida para um batalhão!
Vicente tentou intervir:
— O importante é estarmos juntos…
Mas ninguém o ouviu. As vozes começaram a subir de tom. A prima Sílvia levantou-se abruptamente:
— Eu vou buscar pizza para os miúdos! Isto não é jantar de aniversário!
Senti as lágrimas a quererem saltar-me dos olhos. Fugi para a varanda e fechei a porta atrás de mim. O frio da noite soube-me a liberdade.
Ouvi passos atrás de mim. Era Vicente.
— Aria… desculpa. Eu devia ter-te ajudado mais. Devia ter falado com eles antes…
Olhei-o nos olhos, cansada.
— Não é só hoje, Vicente. É todos os anos. Todos os dias em que sinto que nunca vou ser suficiente para eles… nem para ti.
Ele tentou abraçar-me, mas recuei.
— Eu amo-te — disse ele baixinho.
— Amar não chega quando não há respeito — respondi, sentindo finalmente as lágrimas caírem.
Ficámos em silêncio por longos minutos. Lá dentro ouviam-se vozes exaltadas e risos nervosos. A pizza chegou pouco depois; as crianças correram para a porta como se tivessem sido salvas.
No fim da noite, quando todos se foram embora sem um obrigado ou um gesto de gratidão, sentei-me sozinha na cozinha desarrumada. O cheiro do chouriço frio misturava-se ao vazio dentro de mim.
Vicente entrou e começou a arrumar os pratos em silêncio.
— Não precisas — disse-lhe.
Ele olhou-me com tristeza.
— Quero ajudar-te… quero mudar isto contigo.
Suspirei. Pela primeira vez em muitos anos, não sabia se queria continuar a tentar encaixar-me numa família que nunca me quis verdadeiramente ali.
Enquanto limpava os restos do dia, perguntei-me se algum dia seria possível agradar a todos sem me perder pelo caminho. Talvez certas tradições sejam demasiado enraizadas para mudar. Ou talvez o problema não esteja na tradição em si, mas nas expectativas e direitos que ela alimenta.
E vocês? Já sentiram que nunca vão ser suficientes para quem vos rodeia? Até onde devemos ir para agradar aos outros sem nos esquecermos de nós próprios?