Entre Dois Mundos: O Coração de Uma Mãe Quando a Família se Desfaz
— Não entras mais nesta casa enquanto continuares a proteger a Inês! — gritou António, a voz rouca de raiva e desespero, enquanto eu, debaixo da chuva, sentia o frio a entranhar-se nos ossos e no coração. A porta fechou-se com estrondo atrás de mim. Fiquei ali, com as lágrimas misturadas com a chuva, a olhar para aquela porta que durante vinte anos foi o meu refúgio, agora transformada em muralha.
Nunca pensei que a minha vida chegasse a isto. Sempre fui aquela que apaziguava os ânimos, que fazia o jantar mesmo depois de um dia exaustivo no hospital, que ouvia as queixas do António sobre o trabalho na Câmara Municipal e os desabafos da Inês sobre os dramas da adolescência. Mas naquela noite, tudo mudou. Tudo começou há semanas, quando a Inês chegou a casa mais tarde do que devia, com os olhos vermelhos e um silêncio pesado. O António desconfiou logo do pior.
— O que é que andas a esconder? — perguntou ele, num tom que me gelou o sangue.
— Nada, pai. Só estava com a Mariana — respondeu ela, mas eu vi o tremor nas mãos dela.
Depois daquela noite, os conflitos tornaram-se rotina. O António queria controlar cada passo da Inês: o telemóvel, as redes sociais, até as roupas que ela vestia. Eu tentava mediar, mas era como tentar segurar água entre os dedos. Uma noite, ouvi-os aos gritos na sala:
— Não admito que me faltes ao respeito! — berrou António.
— Eu não sou tua propriedade! — gritou Inês de volta.
Entrei na sala e pus-me entre eles. — Chega! Isto não é maneira de se falar numa família!
O António olhou para mim como se eu fosse uma traidora. — Estás sempre do lado dela! Nunca do meu!
Naquela noite, Inês trancou-se no quarto e eu fiquei sentada no corredor, encostada à porta dela, a ouvi-la chorar baixinho. Senti-me impotente. Lembrei-me da minha mãe, Maria do Carmo, que sempre dizia: “Ser mãe é carregar o mundo às costas sem ninguém ver.” Nunca percebi tão bem como naquele momento.
Os dias seguintes foram um arrastar de silêncios e portas batidas. O António começou a dormir no sofá. Eu tentava manter as aparências: punha a mesa para três, mesmo sabendo que ninguém ia jantar junto. No trabalho, os colegas perguntavam se estava tudo bem. Eu sorria e dizia que sim. Mas por dentro sentia-me a desmoronar.
Uma tarde, recebi uma chamada da escola: a Inês tinha faltado às aulas. Fui procurá-la e encontrei-a sentada num banco do jardim público, com a Mariana ao lado.
— Mãe… — murmurou ela quando me viu.
Sentei-me ao lado dela e abracei-a. — Conta-me o que se passa.
Ela hesitou antes de falar. — O pai não me deixa respirar. Sinto-me sufocada… Às vezes penso em fugir de casa.
O meu coração apertou-se. — Não precisas fugir. Eu estou aqui para ti.
Quando voltámos para casa, o António estava à porta à nossa espera. O olhar dele era fogo.
— Achas normal andares atrás dela como se fosse uma criança? — atirou ele para mim.
— Ela precisa de apoio, António! Não de castigos!
— Precisa é de disciplina! E tu só sabes estragar tudo!
Foi aí que ele me empurrou para fora de casa naquela noite chuvosa. Fiquei ali parada durante minutos eternos até decidir ir para casa da minha irmã, Teresa.
A Teresa recebeu-me de braços abertos. — Sempre foste forte, Ana. Mas não tens de passar por isto sozinha.
Naquela noite não dormi. Pensei em tudo o que tinha sacrificado pela família: os sonhos adiados, as viagens nunca feitas, as noites em claro com febres e trabalhos escolares. E agora? Agora era eu quem precisava de colo.
No dia seguinte tentei falar com o António. Liguei-lhe dezenas de vezes até ele atender:
— Não quero falar contigo — disse ele seco.
— António… precisamos resolver isto. Pela Inês.
— A Inês só te manipula porque tu deixas!
Desligou-me na cara. Senti-me tão sozinha como nunca antes.
A Teresa tentou animar-me ao pequeno-almoço:
— Lembras-te de quando éramos pequenas e fazíamos promessas de nunca deixar ninguém magoar-nos?
Sorri tristemente. — Agora parece impossível proteger quem amamos sem nos perdermos pelo caminho.
Os dias passaram devagar. A Inês mandava mensagens escondidas do pai:
— Mãe, tenho medo dele…
— Vai correr tudo bem, filha — respondia eu, sem acreditar nas próprias palavras.
Procurei ajuda: falei com uma psicóloga da escola e sugeri terapia familiar ao António. Ele recusou-se:
— Não preciso dessas modernices! O problema és tu!
A minha mãe ligou-me um dia:
— Ana, volta para casa. Tenta conversar com ele outra vez.
Mas eu já não sabia se queria voltar àquele lugar onde já não me sentia segura nem amada.
Uma tarde, fui buscar a Inês à escola sem avisar o António. Ela entrou no carro e desabou em lágrimas:
— Não aguento mais…
Levei-a para casa da Teresa comigo. O António apareceu lá à noite furioso:
— Vais raptar a nossa filha agora?
— Ela precisa de paz! Precisa de sentir que tem uma mãe e um pai que a amam!
A discussão foi tão intensa que os vizinhos vieram bater à porta para pedir silêncio. A Teresa pôs-se entre nós:
— Chega! Isto não é vida para ninguém!
O António saiu batendo a porta com tanta força que os quadros caíram da parede.
Nos dias seguintes tentei reconstruir alguma normalidade para mim e para a Inês. Inscrevi-a numa psicóloga juvenil e comecei eu própria terapia. Descobri feridas antigas em mim: o medo do abandono, a necessidade de agradar sempre aos outros mesmo à custa do meu próprio bem-estar.
A Inês começou lentamente a sorrir outra vez. Uma noite veio ao meu quarto:
— Mãe… desculpa por tudo isto.
Abracei-a forte. — Não tens culpa nenhuma, filha. Somos todos vítimas das nossas dores mal curadas.
Passaram-se meses até o António aceitar procurar ajuda profissional. Quando finalmente aceitou ir à terapia familiar connosco, percebi que talvez houvesse esperança de reconstruir alguma coisa — não igual ao que era antes, mas talvez mais verdadeiro.
Hoje vivemos separados mas em paz relativa. A Inês está melhor e eu aprendi a pôr limites onde antes só havia sacrifício cego.
Às vezes olho para trás e pergunto-me: será possível ser boa mãe e boa esposa ao mesmo tempo? Ou cada escolha traz sempre uma perda? E vocês… já sentiram este dilema na vossa vida?