“Mãe, porque não me queres aqui?” – Entre o amor e a manipulação numa família portuguesa
— Não venhas mais cá, Mariana. Só me trazes problemas. — A voz da minha mãe ecoou fria, cortante, como se cada sílaba fosse uma faca a rasgar-me por dentro. Fiquei ali, parada à porta da cozinha, com as mãos trémulas e o coração a bater tão forte que quase me sufocava. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o silêncio pesado que se instalou entre nós.
— Mãe… — tentei, mas ela virou-me as costas, ocupada a limpar o balcão como se eu fosse apenas mais uma nódoa a remover.
Nunca pensei ouvir isto da mulher que me embalou em noites de febre, que me ensinou a fazer arroz de pato e que sempre dizia que família era tudo. Mas naquele momento, percebi que havia algo mais forte do que o sangue: o ressentimento.
A nossa relação nunca foi fácil. Cresci em Vila Nova de Gaia, numa casa pequena mas cheia de vozes — as dos meus pais, dos meus avós, dos meus tios que vinham sempre pedir favores. O meu pai morreu cedo, e a minha mãe ficou sozinha comigo e com o meu irmão mais novo, o Tiago. Ela tornou-se tudo: mãe, pai, chefe de família e até mártir. E eu… eu tentei ser a filha perfeita.
Mas nunca era suficiente. Se tirava boas notas, era porque tinha obrigação. Se ajudava em casa, era porque era minha responsabilidade. Se queria sair com amigas, era egoísta. E quando decidi ir estudar para Lisboa, foi como se a tivesse traído.
— Vais-me deixar sozinha? — chorou ela na noite antes de eu partir. — O Tiago não é como tu, não me ajuda em nada. Vais-me abandonar como toda a gente.
Fui na mesma. E durante anos vivi entre duas cidades: Lisboa, onde finalmente respirava sem medo de errar, e Gaia, onde regressava todos os fins-de-semana para tentar compensar a ausência. Cada visita era um teste: será que hoje vou conseguir agradar-lhe? Será que hoje não vou ouvir que sou ingrata?
O Tiago ficou por casa. Arranjou um trabalho qualquer num café e passava os dias entre o sofá e as saídas com amigos. A minha mãe dizia sempre: — O teu irmão é diferente, precisa de mais apoio. Tu és forte.
Mas eu também precisava de colo. Só que nunca pedia.
Com o tempo, comecei a notar pequenas manipulações. Se não ligava todos os dias, recebia mensagens longas cheias de mágoa: “Se calhar já nem te lembras que tens mãe.” Se não podia ir a casa num fim-de-semana porque tinha exames ou trabalho, ela adoecia subitamente: “Estou tão mal hoje… mas não te preocupes, eu desenrasco-me.”
Os anos passaram e fui-me desgastando. Tinha medo de dizer não. Tinha medo de ser feliz longe dela. Quando arranjei namorado — o Pedro — escondi-o durante meses. Sabia que ela ia dizer que ele me afastava da família.
E assim foi.
— Agora já percebo porque não vens cá tanto — disse ela quando finalmente lho apresentei. — Ele é mais importante do que nós.
O Pedro tentou ser compreensivo, mas ao fim de algum tempo fartou-se das discussões constantes ao telefone, dos jantares cancelados à última hora porque “a minha mãe precisa de mim”.
— Mariana, tu tens direito à tua vida — dizia ele. — Não podes viver sempre para agradar à tua mãe.
Mas como é que se corta esse laço sem se sentir um monstro?
O ponto de rutura chegou numa tarde de domingo. Fui a Gaia para ajudar a minha mãe com uns papéis do banco. Cheguei e encontrei-a sentada à mesa com o Tiago, ambos calados, o ambiente pesado como chumbo.
— O teu irmão está com problemas no trabalho — disse ela sem me olhar nos olhos. — E tu nem perguntas por ele.
— Mãe, eu pergunto sempre…
— Não chega! Tu só pensas em ti! Desde que foste para Lisboa mudaste completamente! — gritou ela, batendo com a mão na mesa.
O Tiago olhou para mim com um ar vazio, como se eu fosse uma estranha.
— Se calhar é melhor ires embora — murmurou ele.
Senti-me expulsa da minha própria família.
Saí dali sem saber se chorava ou gritava. Liguei ao Pedro e desatei num pranto no meio da rua.
— Eu só queria ajudar…
— Mariana, tu não és responsável pela felicidade deles — disse ele suavemente.
Mas eu sentia-me responsável por tudo: pela solidão da minha mãe, pelo fracasso do meu irmão, até pela morte do meu pai tantos anos antes.
Durante semanas não falei com eles. A minha mãe mandava mensagens curtas: “Espero que estejas bem.” “O Tiago perguntou por ti.” Mas nunca um pedido de desculpa. Nunca um reconhecimento do meu esforço.
Comecei a ir à terapia. A psicóloga perguntou-me:
— Mariana, alguma vez pensou no que quer para si?
E eu não soube responder.
Foi preciso chegar ao fundo para perceber que estava presa numa teia de culpa e manipulação emocional. Que amar não é sacrificar-se até desaparecer.
Um dia recebi uma mensagem diferente:
— Preciso de falar contigo. Vem cá.
Fui cheia de esperança — talvez agora as coisas mudassem. Mas quando cheguei lá, tudo recomeçou:
— Preciso que me ajudes com as contas da luz. O Tiago não percebe nada disto. E já agora vê se falas com ele, está impossível.
Era sempre assim: eu era o tampão dos problemas deles.
Nesse dia tive coragem de dizer:
— Mãe, eu também tenho problemas. Também preciso de apoio às vezes.
Ela olhou para mim como se eu tivesse dito uma heresia.
— Tu és forte. Sempre foste. Não sejas ingrata.
Foi aí que percebi: nunca ia ser suficiente para ela enquanto continuasse a tentar preencher um vazio que não era meu.
Afastei-me aos poucos. Continuei a ligar, mas deixei de correr sempre que ela chamava. Comecei a dizer não sem sentir que estava a cometer um crime.
O Pedro ficou ao meu lado. O Tiago continuou distante — talvez um dia perceba também ele os seus próprios limites.
Hoje olho para trás e vejo uma mulher cansada mas finalmente dona de si mesma. Ainda amo a minha mãe — sempre vou amar — mas aprendi que amor sem respeito próprio é prisão.
Pergunto-me muitas vezes: quantos de nós vivem presos à culpa familiar? Até onde devemos ir por aqueles que amamos? E quando é que chega o momento de nos escolhermos a nós próprios?