O Enigma dos Corações Desencontrados: Uma História de Amor e Perda em Lisboa
— Porquê, Sofia? Diz-me só porquê! — gritei, a voz embargada, enquanto ela arrumava as últimas roupas na mala. O cheiro do café frio misturava-se ao perfume dela, ainda pairando no ar do nosso pequeno apartamento em Alfama. Sofia não me olhou nos olhos. Limitou-se a fechar o fecho da mala com um estalo seco.
— Não é por ti, Nathan. É por mim. Preciso de sentir outra coisa, de viver… — respondeu, a voz quase um sussurro, como se tivesse medo de acordar os vizinhos ou, pior ainda, de acordar a si própria para a realidade do que estava a fazer.
Fiquei ali, parado, sem saber se devia implorar ou simplesmente aceitar. O relógio da parede marcava 7h12 da manhã. Tinha passado a noite em claro, a ouvir-lhe os passos inquietos pelo corredor, a sentir o peso do silêncio entre nós. E agora, tudo se resumia àquela mala e à ausência dela.
Sofia saiu sem olhar para trás. O som da porta a fechar ecoou mais alto do que qualquer discussão que já tivéramos. Sentei-me no sofá, as mãos a tremerem. Tinha feito tudo certo: trabalhava horas extra no escritório de contabilidade para garantir que nada lhe faltava, ajudava a mãe dela com as compras, nunca me esquecia dos aniversários. E mesmo assim, ela escolheu o Miguel — aquele tipo despreocupado do bairro, sempre com um sorriso fácil e histórias de aventuras que pareciam saídas de um filme.
Durante semanas, vivi como um fantasma. Ia trabalhar mecanicamente, respondia aos colegas com monossílabos e evitava os olhares de pena da minha irmã, Mariana. Ela insistia em aparecer lá em casa com tupperwares de comida e frases feitas:
— Vais ver que tudo passa, mano. Ela não te merecia.
Mas eu não queria ouvir isso. Queria respostas. Por que é que pessoas boas acabam sozinhas? Por que é que mulheres incríveis escolhem homens que não lhes dão valor?
Numa noite chuvosa de novembro, decidi procurar o Sr. António, o velho sapateiro da rua de baixo. Diziam que ele sabia ouvir como ninguém e tinha sempre uma palavra certa para cada dor. Entrei na loja e o cheiro a couro e graxa trouxe-me uma estranha sensação de conforto.
— Boa noite, Nathan. — Ele já sabia o meu nome; toda a vizinhança sabia da minha história.
— Preciso de falar consigo… — disse-lhe, sentando-me num banco gasto pelo tempo.
O Sr. António limpou as mãos num pano e olhou-me com aqueles olhos azuis cheios de histórias.
— O amor é como sapatos novos: às vezes apertam no início, outras vezes nunca se ajustam aos nossos pés — começou ele, com aquele jeito filosófico tão seu. — Mas diz-me lá: tu amavas a Sofia ou amavas a ideia de seres amado por ela?
Fiquei sem resposta. Nunca tinha pensado nisso daquela forma. Sempre achei que bastava ser bom, fazer tudo certo, para merecer amor em troca.
— Sabes, Nathan — continuou ele —, há quem procure emoção onde devia procurar paz. E há quem ofereça paz quando o outro só quer tempestade.
Saí dali com mais perguntas do que respostas. Mas aquela noite marcou o início de uma busca interior dolorosa. Comecei a reparar nos casais à minha volta: a minha colega Inês, sempre dedicada ao namorado que só lhe ligava quando precisava; o meu primo Rui, apaixonado por uma rapariga que nunca lhe devolvia as chamadas.
Certa tarde, cruzei-me com Sofia na rua Augusta. Ela estava diferente: cabelo solto, sorriso nervoso. Ao lado dela, Miguel ria alto, gesticulando como sempre. Quando me viu, Sofia hesitou por um segundo antes de acenar timidamente.
— Olá, Nathan… — disse ela.
— Olá — respondi, tentando soar indiferente.
Miguel aproximou-se e estendeu-me a mão.
— Então, tudo bem? Ouvi dizer que andas a trabalhar imenso!
Aquela frase soou quase como uma provocação. Sorri amarelo e despedi-me rapidamente. Fiquei a vê-los afastarem-se, sentindo uma mistura de raiva e tristeza.
Nessa noite, liguei à Mariana.
— Achas que fui demasiado previsível? Que devia ter sido mais… sei lá… espontâneo?
Ela suspirou do outro lado da linha.
— Não te culpes por seres quem és. Mas às vezes as pessoas querem sentir-se vivas de outras formas. Isso não faz de ti menos valioso.
Os meses passaram e fui aprendendo a viver com o vazio. Voltei a sair com amigos antigos, inscrevi-me num curso de fotografia e comecei a olhar para Lisboa com outros olhos — as ruas estreitas de Alfama deixaram de ser apenas cenário da minha dor para se tornarem palco de novas possibilidades.
Um dia, ao fotografar o pôr-do-sol no Miradouro da Senhora do Monte, conheci Clara. Tinha um riso contagiante e uma maneira de ver o mundo que me desarmou logo na primeira conversa.
— Gosto de pessoas honestas — disse ela — mesmo quando isso significa serem um bocadinho aborrecidas.
Rimo-nos juntos e senti algo diferente: uma paz tranquila misturada com curiosidade genuína.
Com Clara não havia jogos nem promessas vazias. Falávamos sobre tudo: medos, sonhos adiados, traumas familiares. Ela contou-me sobre o pai ausente e sobre como aprendeu a confiar em si mesma desde cedo. Eu contei-lhe sobre Sofia e sobre o buraco negro em que me tinha afundado.
— Sabes — disse ela numa dessas conversas longas ao telefone — às vezes precisamos perder para nos encontrarmos.
A relação com Clara foi crescendo devagarinho, sem pressas nem expectativas desmedidas. Mas nem tudo era perfeito: os meus pais achavam-na demasiado independente; Mariana dizia que eu devia ter mais cuidado para não me magoar outra vez; até colegas do trabalho faziam comentários sobre como ela era “diferente” das namoradas tradicionais.
Houve discussões acesas em jantares de família:
— Não percebo porque não voltas para a Sofia! Ela era tão certinha… — dizia a minha mãe entre garfadas de bacalhau.
Eu respondia sempre com evasivas, mas por dentro sentia-me dividido entre agradar aos outros e ser fiel ao que sentia.
Com o tempo percebi que o verdadeiro conflito não era entre mim e Sofia ou entre mim e Clara — era dentro de mim mesmo: entre o medo de ficar sozinho e o desejo de ser aceite tal como sou.
Uma noite, depois de uma discussão particularmente dura com os meus pais sobre o futuro da relação com Clara, saí para caminhar pelas ruas desertas da cidade. O vento frio cortava-me o rosto mas ajudava-me a pensar.
Lembrei-me das palavras do Sr. António: “há quem ofereça paz quando o outro só quer tempestade”. Talvez eu tivesse passado demasiado tempo a tentar ser o porto seguro dos outros sem perceber se era isso que realmente queria para mim.
Quando voltei para casa naquela noite, Clara estava à minha espera sentada no sofá, um livro aberto no colo.
— Estás bem? — perguntou ela suavemente.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Estou cansado de tentar encaixar onde não pertenço — confessei. — Quero ser feliz contigo, mesmo que isso signifique dececionar algumas pessoas pelo caminho.
Ela sorriu e abraçou-me forte.
Hoje olho para trás e percebo que o enigma dos corações desencontrados não tem uma solução simples. Talvez sejamos todos peças imperfeitas à procura do nosso lugar num puzzle maior do que nós próprios.
Pergunto-me: quantas vezes sacrificamos quem somos só para caber nas expectativas dos outros? E será que vale mesmo a pena tentar ser sempre o “bom rapaz” se isso nos impede de viver plenamente? Gostava de saber o que vocês pensam.