Cinzas de um Amor: Entre Laços e Desilusões

— Não me olhes assim, Inês. Eu não sou a vilã desta história. — A minha voz tremeu, mas mantive-me firme diante da minha irmã mais nova, que me fitava com olhos acusadores. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se com o silêncio pesado da cozinha da nossa mãe, onde tudo parecia mais pequeno desde que o Diogo saiu de casa.

Ela pousou a chávena com força na mesa. — Então quem é? O Diogo? Ou foste tu que deixaste tudo arder?

As palavras dela eram facas. Senti o peito apertado, como se cada sílaba me obrigasse a reviver os últimos meses. O Diogo e eu éramos o casal perfeito — pelo menos era isso que todos diziam. Ele era o homem que todas as amigas invejavam: atencioso, carinhoso, sempre pronto a surpreender-me com flores ou bilhetes deixados no frigorífico. Mas ninguém via as noites em que ele chegava tarde, exausto do trabalho, e eu fingia dormir para evitar mais uma conversa sobre contas ou sobre a minha mãe, que nunca aceitou bem o nosso casamento.

Lembro-me do dia em que tudo começou a ruir. Era uma sexta-feira chuvosa, típica de novembro em Lisboa. O Diogo entrou em casa encharcado, largou o casaco no chão e sentou-se à mesa sem dizer palavra. Eu estava a preparar o jantar — bacalhau à Brás, o seu prato preferido — mas ele nem olhou para mim.

— O que se passa? — perguntei, tentando soar casual.

Ele suspirou fundo. — Estou cansado, Sofia. Cansado disto tudo. Do trabalho, das discussões com a tua mãe, das tuas cobranças.

Fiquei gelada. — Minhas cobranças? Eu só quero que estejas presente! Que sejas o homem com quem casei!

Ele levantou-se abruptamente, a cadeira arrastando-se pelo chão. — Talvez eu já não seja esse homem. Talvez nunca tenha sido.

As palavras dele ecoaram durante dias na minha cabeça. Comecei a questionar tudo: será que alguma vez fomos felizes ou apenas fingimos para agradar aos outros? As discussões tornaram-se rotina. A minha mãe ligava todos os dias para saber se ele já tinha mudado de ideias sobre ter filhos; ele evitava-a como podia, mas eu sentia-me presa entre os dois.

A Inês, sempre do lado da nossa mãe, acusava-me de não lutar pelo casamento. — Se gostasses mesmo dele, fazias um esforço! — dizia ela, como se amar fosse suficiente para colar os pedaços partidos.

Mas ninguém sabia das noites em que chorei sozinha na casa de banho, com medo de acordar o Diogo. Ou das vezes em que pensei em sair de casa e nunca mais voltar. O amor pode ser uma prisão dourada: por fora brilha, mas por dentro sufoca.

O ponto de rutura chegou numa manhã de domingo. Estávamos sentados à mesa do pequeno-almoço quando ele largou a chávena e disse:

— Sofia, acho que precisamos de um tempo.

O mundo parou. Senti as lágrimas a subir-me aos olhos, mas recusei-me a chorar à frente dele.

— Um tempo? Ou queres acabar?

Ele hesitou. — Não sei. Só sei que assim não consigo continuar.

Arrumou algumas roupas numa mala e saiu sem olhar para trás. Fiquei ali sentada, sozinha, com o cheiro do café frio e o som do relógio a marcar cada segundo da minha solidão.

Os dias seguintes foram um borrão de telefonemas da minha mãe — “Eu avisei-te!” — e mensagens da Inês a perguntar se já tinha falado com ele. No trabalho, fingia normalidade; em casa, afogava-me no silêncio.

Uma noite, decidi ir até ao miradouro da Graça, onde costumávamos ver as luzes da cidade juntos. Sentei-me no banco onde ele me pediu em casamento e chorei como há muito não chorava. Senti raiva dele, de mim própria, da minha família. Senti raiva do destino por me ter dado tudo para depois me tirar tudo de novo.

O Diogo voltou semanas depois para buscar o resto das coisas. Não houve gritos nem lágrimas; só um silêncio pesado e olhares vazios.

— Espero que sejas feliz — disse-lhe antes de fechar a porta.

Ele sorriu tristemente. — Tu também mereces ser feliz, Sofia.

A casa ficou ainda mais vazia depois disso. A minha mãe continuou a culpar-me; a Inês afastou-se aos poucos. Os amigos desapareceram como folhas ao vento quando perceberam que já não éramos o casal perfeito das redes sociais.

Demorei meses a aceitar que o amor pode morrer mesmo quando ainda há carinho. Que às vezes é preciso deixar ir para não nos perdermos também.

Hoje olho para trás e pergunto-me: teria feito alguma coisa diferente? Ou será que estava tudo destinado a arder desde o início? Talvez nunca saiba a resposta. Mas aprendi que as cinzas também podem ser férteis — e talvez um dia volte a florescer.

E vocês? Já sentiram o peso de expectativas alheias sobre os vossos próprios sentimentos? Até onde iriam para salvar algo que já não vos pertence?