A Verdade Despedaçada por um Telefonema Inesperado

— Não desligues, por favor! — sussurrei, com a voz embargada, enquanto o telefone vibrava insistentemente na mesa de cabeceira. O quarto estava mergulhado numa penumbra cúmplice, apenas interrompida pelo som abafado dos nossos corações acelerados. O José olhou-me, os olhos castanhos cheios de medo e desejo, e hesitou antes de me passar o telemóvel.

— É o Rui — murmurou ele, quase inaudível.

O nome do meu marido pairou no ar como uma sentença. Senti o sangue gelar-me nas veias. O Rui nunca ligava àquela hora, ainda menos sabendo que eu estava supostamente em casa da minha mãe, a ajudar com as compras. O José afastou-se, puxando rapidamente os lençóis para cobrir o corpo nu. Eu atendi, tentando controlar o tremor na voz.

— Olá, amor…

Do outro lado, o silêncio era pesado. Depois, ouvi um suspiro profundo e uma voz que não reconheci de imediato — fria, distante.

— Maria, onde estás?

O uso do meu nome completo foi como um murro no estômago. Só o Rui me chamava assim quando estava zangado ou desconfiado. Olhei para o José, que se vestia apressadamente, evitando o meu olhar.

— Estou… com a mãe, a fazer compras — menti, sentindo-me miserável.

— A sério? — A voz dele tremeu. — Porque é que a tua mãe acabou de me ligar a perguntar se eu sabia de ti? Ela disse que não te vê desde ontem.

O chão pareceu fugir-me dos pés. O José parou, camisa meio abotoada, olhos presos nos meus. O silêncio entre nós era ensurdecedor. Senti as lágrimas ameaçarem cair.

— Rui… eu posso explicar…

— Não expliques nada. — A voz dele agora era cortante. — Só quero saber: estás com ele?

A pergunta ficou a ecoar no quarto. O José virou-se de costas para mim, envergonhado. Eu não conseguia responder. O Rui desligou antes que eu dissesse qualquer coisa.

Fiquei ali sentada, nua e exposta, com o telefone ainda quente na mão. O José aproximou-se, tocando-me no ombro.

— Maria… desculpa. Eu nunca quis que isto acontecesse assim.

Afastei-o com um gesto brusco. — Não fales comigo agora.

Levantei-me e comecei a vestir-me às pressas. Cada peça de roupa parecia pesar toneladas. O cheiro dele ainda impregnava a minha pele e sentia-me suja, traída por mim própria. Como é que cheguei ali? Como é que deixei que tudo se desmoronasse?

Conheci o José há anos, quando ele e o Rui começaram a trabalhar juntos na Câmara Municipal de Setúbal. Tornaram-se inseparáveis — futebol ao domingo, jantares em nossa casa, férias em família no Algarve. Eu sempre admirei a lealdade deles, aquela amizade quase fraterna. Mas depois de perder o meu pai, há dois anos, comecei a sentir-me sozinha mesmo rodeada de gente. O Rui mergulhou no trabalho e eu… eu procurei consolo onde não devia.

O José era atento, sensível às minhas dores. Uma noite, depois de um jantar regado a vinho tinto e recordações antigas, beijou-me na cozinha enquanto o Rui dormia no sofá da sala. Foi como acender um fósforo num barril de pólvora. A partir daí, tudo se tornou inevitável.

Os encontros eram furtivos: motéis baratos na margem sul, mensagens apagadas à pressa, olhares cúmplices durante os jantares de grupo. Sentia-me viva e ao mesmo tempo miserável. Cada toque do José era uma punhalada na confiança do Rui.

Agora tudo estava exposto. Saí do apartamento do José sem olhar para trás. O céu estava cinzento e ameaçava chover. Caminhei até ao carro com as mãos a tremer e liguei à minha mãe.

— Mãe… preciso de falar contigo.

Ela percebeu logo pelo tom da minha voz que algo estava errado.

— Vem cá a casa, filha. Estou aqui para ti.

Quando cheguei à casa dos meus pais em Palmela, fui recebida com um abraço apertado e lágrimas silenciosas. Sentei-me à mesa da cozinha onde tantas vezes partilhámos alegrias e tristezas.

— O que aconteceu? — perguntou ela baixinho.

Contei-lhe tudo: a solidão, o vazio no casamento, a traição com o José. Ela ouviu sem me interromper, apenas segurando a minha mão com força.

— Maria… tu sabes que fizeste mal. Mas também sei que ninguém trai por acaso. O que é que te falta? O que é que procuras?

Não soube responder-lhe. Talvez procurasse ser vista outra vez, sentir-me desejada como nos primeiros anos do casamento. Talvez quisesse apenas fugir à rotina sufocante dos dias todos iguais: acordar cedo para preparar os miúdos para a escola, trabalhar horas a fio no escritório de contabilidade do tio Álvaro, chegar a casa exausta para encontrar o Rui colado ao computador ou ao telemóvel.

Naquela noite não consegui dormir. Fiquei horas deitada no quarto da adolescência, rodeada pelos posters antigos dos Xutos & Pontapés e pelas fotografias amareladas das férias em Sesimbra. O telefone tocou várias vezes — mensagens do José, chamadas não atendidas do Rui. Não tive coragem de responder a nenhum deles.

No dia seguinte fui trabalhar como se nada fosse. Mas toda a gente parecia notar algo diferente em mim: os olhos inchados, o sorriso forçado. A minha colega Sandra puxou-me para o lado na pausa do café.

— Está tudo bem contigo? Pareces tão distante…

Quis gritar-lhe que nada estava bem, que tinha destruído tudo à minha volta por causa de uma paixão proibida e fugaz. Mas limitei-me a sorrir e dizer que era só cansaço.

Ao fim da tarde recebi uma mensagem do Rui: “Precisamos de falar.”

Encontrei-o em casa à mesa da sala, as mãos entrelaçadas sobre o tampo de madeira riscado pelos anos de uso familiar. Os miúdos estavam na casa dos avós paternos.

— Maria… quanto tempo? — perguntou ele sem me olhar nos olhos.

Sentei-me à frente dele e tentei encontrar palavras para explicar o inexplicável.

— Não sei… começou há uns meses…

Ele respirou fundo e passou as mãos pelo rosto.

— Com o José? O meu melhor amigo?

Assenti em silêncio. Vi as lágrimas brilharem nos olhos dele antes de caírem pela face abaixo.

— Porque é que não me disseste que estavas infeliz?

A pergunta ficou suspensa entre nós como uma nuvem negra prestes a rebentar em tempestade.

— Tentei… mas tu estavas sempre tão distante…

Ele levantou-se abruptamente e atirou uma cadeira ao chão.

— E achaste que era melhor traíres-me com ele? Com ele?!

Chorei baixinho enquanto ele saía porta fora sem olhar para trás.

Os dias seguintes foram um tormento: telefonemas dos sogros preocupados com as crianças (“O pai está estranho”, dizia o mais novo), mensagens do José (“Perdoa-me”), silêncios ensurdecedores em casa dos meus pais. Senti-me uma estranha na minha própria vida.

O Rui acabou por aceitar falar comigo outra vez semanas depois. Sentámo-nos num banco do Parque da Comenda enquanto as crianças brincavam ao longe.

— Não sei se consigo perdoar-te — disse ele finalmente. — Mas quero tentar perceber onde falhámos os dois.

Olhei-o nos olhos pela primeira vez em muito tempo e vi ali não só dor mas também amor ferido à espera de cura.

O José desapareceu da nossa vida pouco depois; mudou-se para Braga e nunca mais ouvi falar dele. O Rui e eu começámos terapia de casal — um processo doloroso mas necessário para reconstruir alguma coisa sobre as ruínas do passado.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes ignoramos os sinais de alarme nas nossas relações? Quantas vezes preferimos calar as nossas dores até elas explodirem da pior maneira?

Será possível recomeçar depois de trair quem mais amamos? Ou há feridas que nunca saram? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.