Quando a Minha Filha Me Dispensou do Dia Mais Importante da Sua Vida

— Mãe, eu… preciso que não venhas ao meu casamento.

As palavras da Zélia caíram como uma chuva gelada no meio do verão. Senti o chão fugir-me dos pés, as mãos a tremerem, o coração a bater tão forte que temi que ela ouvisse. Olhei-a nos olhos, à procura de uma brincadeira, de um sorriso maroto, qualquer coisa que desmentisse aquilo. Mas só vi tristeza e uma determinação que nunca lhe conheci.

— O quê? — a minha voz saiu num sussurro, quase infantil.

Ela desviou o olhar, mexendo nervosamente na manga do casaco. — O Radek… não se sente confortável contigo. E eu… eu não quero problemas no meu dia. Preciso que respeites isso.

Radek. O nome dele era como fel na boca. Desde que apareceu na vida da Zélia, tudo mudou. Antes éramos inseparáveis: compras ao sábado, conversas até tarde sobre tudo e nada, risos cúmplices e até lágrimas partilhadas quando o mundo parecia demasiado pesado para ela. Quando saiu de casa para a sua primeira casa alugada, chorei sozinha no quarto dela, mas senti orgulho: dei-lhe asas para voar.

Conheci o Radek num jantar de família. Ele era educado, mas distante. Não me olhava nos olhos, respondia com monossílabos. Achei que era timidez, mas com o tempo percebi que era outra coisa: desconfiança. Talvez até desprezo. Tentei aproximar-me — convidei-os para almoços, ofereci ajuda quando soube que ele estava desempregado, até lhe dei um livro sobre culinária portuguesa porque ele dizia não perceber nada de bacalhau.

Mas nada resultava. Zélia começou a afastar-se. Já não me ligava todos os dias, já não partilhava os pequenos dramas do trabalho ou as alegrias das conquistas. Quando lhe perguntava porquê, respondia sempre:

— Mãe, estou ocupada. Cresci, sabes?

Mas eu sabia que era mais do que isso. O Radek não gostava de mim e ela estava a escolher o lado dele.

A gota de água foi um domingo à tarde, há três meses. Estávamos todos na sala — eu, Zélia e Radek — a ver um filme qualquer na televisão. Fiz um comentário sobre o futuro deles, algo inocente: “Quando tiverem filhos, vão perceber o que é preocupação.” Ele olhou-me de lado e disse:

— Não se preocupe tanto connosco. A Zélia sabe o que faz.

O tom foi seco, quase agressivo. Senti-me humilhada na minha própria casa. Zélia não disse nada. Limitou-se a olhar para as mãos.

Depois disso, vi-a cada vez menos. As mensagens dela tornaram-se curtas, os encontros raros e sempre apressados. Quando soube do noivado pelo Facebook — sim, pelo Facebook! — chorei como uma criança.

Tentei falar com ela várias vezes:

— Zélia, precisamos conversar.

— Agora não posso, mãe.

— Mas filha…

— Mãe, por favor! Não compliques!

E agora isto: “Não venhas ao meu casamento”.

Sentei-me no sofá depois de ela sair. A casa parecia maior e mais fria do que nunca. Olhei para as fotografias na estante: Zélia em pequena no parque infantil; Zélia com o diploma na mão; Zélia a rir-se comigo numa esplanada em Lisboa. Tantas memórias. Tantos anos a dar-lhe tudo o que podia — amor, compreensão, liberdade.

Lembrei-me das noites em que ela vinha para a minha cama depois de um pesadelo; das vezes em que lhe segurei a mão no hospital quando teve aquela pneumonia; dos conselhos sobre rapazes, sobre amigas falsas, sobre sonhos e medos.

Onde foi que errei? Terá sido por querer protegê-la demais? Por não aceitar logo o Radek? Por tentar manter-me presente quando ela queria distância?

Os dias seguintes foram um tormento. A minha irmã Maria ligou-me:

— Ouvi dizer que não vais ao casamento da Zélia… O que se passa?

Expliquei-lhe tudo entre soluços. Ela ficou em silêncio durante uns segundos e depois disse:

— Dá-lhe tempo. Os filhos às vezes magoam-nos sem querer.

Mas isto não era sem querer. Era uma escolha.

No trabalho andava ausente, distraída. Os colegas perguntavam se estava doente. Não sabia como explicar-lhes aquele vazio dentro de mim.

Uma semana depois recebi uma mensagem da Zélia:

“Mãe, espero que entendas. Não quero perder-te, mas preciso disto para ser feliz.”

Fiquei horas a olhar para aquelas palavras. Como podia ela ser feliz sem mim? Como podia eu ser feliz sem ela?

Tentei falar com o pai dela — o António — de quem me separei há anos mas com quem mantinha uma relação cordial por causa da Zélia.

— Achas justo isto? — perguntei-lhe.

Ele suspirou:

— Não sei… Talvez tenhas sido demasiado presente na vida dela. Às vezes os filhos precisam de espaço para errar sozinhos.

— Mas isto não é espaço! É afastamento! É rejeição!

Ele encolheu os ombros:

— Não podes obrigá-la a escolher-te a ti.

As semanas passaram devagar. O dia do casamento aproximava-se como uma tempestade anunciada. Recebi convites para festas de despedida de solteira de amigas dela — todas recusadas por mim com desculpas esfarrapadas.

Na véspera do casamento sentei-me à janela com uma chávena de chá nas mãos e olhei para a rua vazia. Lembrei-me da primeira vez que levei a Zélia à escola primária: ela chorava agarrada à minha saia e eu prometi-lhe que nunca a deixaria sozinha no mundo.

Agora era ela quem me deixava sozinha.

No dia do casamento acordei cedo sem saber o que fazer com tanto tempo livre. Vesti-me devagar, pus um pouco de maquilhagem como se fosse sair para algum lado importante — talvez para me convencer de que ainda fazia parte da vida dela.

Ao meio-dia recebi uma mensagem curta:

“Obrigada por tudo, mãe. Amo-te sempre.”

Chorei durante horas.

À noite fui até à praia sozinha. Sentei-me na areia fria e ouvi o mar a bater nas pedras. Pensei em tudo o que vivi com a Zélia — nos erros e nos acertos, nas alegrias e nas dores partilhadas.

Será que algum dia ela vai perceber quanto dói ser deixada para trás? Será que fiz bem em amá-la tanto? Ou será que o amor também sufoca quando é demais?

E vocês? Já sentiram esta dor de perder alguém sem saber exatamente porquê? O amor de mãe tem limites ou deve ser incondicional até ao fim?