“Nunca vais entrar no meu apartamento!” — O dia em que a minha sogra virou a minha vida do avesso
“Nunca vais entrar no meu apartamento! Porque se entrares, nunca mais me livro de ti!”
As palavras da Dona Patrícia ecoaram pela sala, cortando o ar como uma faca. Eu estava de pé, junto à janela, as mãos trémulas a segurar a chávena de chá que já nem sentia. O Miguel, meu marido, olhava para mim com aquele olhar perdido de quem queria desaparecer dali. O silêncio caiu pesado, apenas interrompido pelo tique-taque do velho relógio de parede.
“Patrícia, por favor…”, tentei argumentar, mas ela ergueu a mão, interrompendo-me.
“Não insistas, Sofia. O apartamento é meu. E está decidido.”
Senti o rosto arder de vergonha e raiva. Não era a primeira vez que me sentia uma intrusa naquela família. Mas nunca pensei que pedir abrigo — mesmo temporário — pudesse desencadear tamanha tempestade.
Tudo começou há três meses, quando o senhorio nos avisou que ia vender o nosso T2 em Benfica. Eu e o Miguel tínhamos acabado de saber que eu estava grávida do nosso primeiro filho. A notícia devia ter sido motivo de alegria, mas rapidamente se transformou numa fonte de ansiedade. Procurámos casa por todo o lado, mas os preços estavam absurdos. O Miguel sugeriu então falar com a mãe dele.
“Ela tem aquele apartamento vazio em Odivelas…”, disse ele uma noite, enquanto eu chorava baixinho na cozinha.
“Acham mesmo que é boa ideia?”, perguntei-lhe, já a imaginar as conversas tensas e os olhares de lado da Dona Patrícia.
“É só até encontrarmos algo nosso. Ela vai perceber.”
Mas não percebeu. E agora ali estávamos, eu com a alma em frangalhos e ela com o olhar duro de quem não cede nem um milímetro.
O Miguel tentou intervir:
“Mãe, é só por uns meses. A Sofia está grávida… Não temos para onde ir.”
A Dona Patrícia suspirou fundo, cruzou os braços e fitou-me como se eu fosse uma ameaça ao seu património.
“Vocês jovens pensam que tudo se resolve com um pedido. Eu trabalhei uma vida inteira para ter o que tenho. Esse apartamento é o meu seguro para a reforma. Se vos deixo entrar, nunca mais saem de lá. E depois? Fico eu sem nada?”
As palavras dela magoaram-me mais do que queria admitir. Senti-me pequena, indesejada, como se estivesse a pedir esmola em vez de ajuda à família.
Saí dali sem dizer mais nada. O Miguel ficou para trás, tentando apaziguar a mãe, mas eu sabia que era inútil. Fui andando pelas ruas frias de Lisboa, as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto. Lembrei-me da minha própria mãe, que morreu há dois anos e que nunca teria hesitado em abrir-me a porta.
Nessa noite dormi mal. O Miguel chegou tarde, cansado e derrotado.
“Ela não vai ceder”, disse ele baixinho. “Diz que se abrir essa porta agora, nunca mais consegue fechá-la.”
“E tu? Vais aceitar isso?”
Ele encolheu os ombros.
“Não sei o que fazer.”
Os dias seguintes foram um pesadelo. Tínhamos duas semanas para sair do apartamento e nenhuma solução à vista. Os meus pais já não estavam cá e os meus irmãos viviam todos fora do país. Os amigos tinham as suas próprias vidas e problemas.
Comecei a sentir uma raiva surda crescer dentro de mim — não só contra a Dona Patrícia, mas também contra o Miguel. Porque é que ele não lutava mais por nós? Porque é que parecia sempre tão resignado?
Uma noite, depois de mais uma discussão sobre caixas e mudanças, atirei-lhe à cara:
“Se fosse a tua mãe a precisar de ajuda, eu nunca hesitaria! Nunca!”
Ele ficou calado durante tanto tempo que pensei que ia sair porta fora. Mas limitou-se a sentar-se no sofá e pôs as mãos na cabeça.
“Eu sei…”, murmurou. “Mas ela é assim desde sempre. Nunca cedeu nada a ninguém.”
No dia seguinte, decidi ir falar com ela sozinha. Queria tentar explicar-lhe como me sentia — não como nora, mas como mulher prestes a ser mãe sem um teto seguro.
Quando cheguei ao prédio dela em Alvalade, hesitei antes de tocar à campainha. Ela abriu a porta com aquele ar desconfiado.
“O que queres agora?”
Respirei fundo.
“Só quero falar consigo… Por favor.”
Sentámo-nos na sala dela — tudo impecável, sem uma almofada fora do sítio. Contei-lhe tudo: o medo de não ter onde criar o meu filho, as noites sem dormir, a sensação de estar sozinha no mundo.
Ela ouviu-me em silêncio, sem uma única expressão no rosto.
“No meu tempo”, disse finalmente, “ninguém me deu nada feito. Tive de lutar por tudo.”
“Eu também luto”, respondi-lhe com voz trémula. “Mas às vezes precisamos de um empurrão… Nem que seja só por uns meses.”
Ela abanou a cabeça.
“Se te deixo entrar agora, nunca mais sais. Já vi isso acontecer tantas vezes… As pessoas acomodam-se.”
Senti-me derrotada. Levantei-me para sair quando ela disse:
“Se quiseres posso emprestar-te dinheiro para alugar outro sítio.”
Olhei para ela incrédula.
“Não quero dinheiro… Quero sentir que pertenço à família.”
Saí dali com o coração ainda mais pesado do que quando entrei.
Os dias passaram depressa demais. No último dia no nosso apartamento antigo, sentei-me no chão da sala vazia e chorei como há muito não chorava. O Miguel tentou consolar-me, mas eu já nem conseguia olhar para ele sem sentir mágoa.
Acabámos por alugar um quarto numa casa partilhada em Chelas — eu grávida de sete meses, ele a fazer turnos duplos para pagar as contas. A casa era fria e barulhenta; os outros inquilinos eram simpáticos mas distantes.
As semanas passaram devagar. O bebé nasceu numa madrugada chuvosa de fevereiro — uma menina linda a quem demos o nome de Matilde.
A Dona Patrícia apareceu no hospital com um ramo de flores e um sorriso forçado.
“Parabéns”, disse ela ao Miguel, ignorando-me quase por completo.
Durante meses evitou visitar-nos na casa partilhada. Quando finalmente apareceu para conhecer a neta, entrou e olhou em volta com desdém.
“Não percebo como conseguem viver assim…”
Mordi o lábio para não responder. Mas naquele momento percebi que nunca ia conseguir agradar-lhe — não importava o quanto tentasse.
O Miguel foi-se afastando cada vez mais — passava mais tempo fora do que em casa. As discussões tornaram-se rotina: sobre dinheiro, sobre a Matilde, sobre o futuro incerto.
Um dia apanhei-o ao telefone com a mãe:
“…não aguento mais isto… ela está sempre nervosa… sinto-me sufocado…”
Senti uma dor aguda no peito — não sabia se era ciúme ou apenas tristeza profunda.
Naquela noite esperei que ele adormecesse e fui até à janela do nosso pequeno quarto. Olhei para as luzes da cidade e perguntei-me como é que tudo tinha corrido tão mal tão depressa.
Será que fui egoísta ao pedir ajuda? Ou será que foi ela quem nunca soube ser mãe — nem sogra?
Hoje olho para trás e vejo uma mulher diferente daquela que era há um ano: mais forte, mais dura talvez… mas também mais sozinha.
E pergunto-me: quantas famílias se destroem por orgulho? Quantos filhos crescem sem saber o que é pertença? Será possível perdoar quem nos fecha a porta quando mais precisamos?