“Naquela noite, ouvi uma conversa que mudou tudo”: Um fim de semana no novo lar da minha filha
— Mãe, não te esqueças de trazer o teu casaco azul, aquele que te fica tão bem! — gritou a Mariana do outro lado da linha, com aquela voz entusiasmada que já não ouvia há meses.
Sorri, mas por dentro sentia um aperto. O convite para passar o fim de semana na casa nova dela era um gesto bonito, mas também estranho. Desde que o António, o meu marido, morreu, a nossa relação ficou mais distante. O tempo, os netos, o trabalho dela… tudo servia de desculpa para nos vermos pouco. Agora, de repente, aquele convite insistente: “Vem, mãe! Quero mostrar-te tudo. Vou fazer a tua sopa favorita!”
Cheguei na sexta-feira ao fim da tarde. O bairro era moderno, os prédios altos e frios. Mariana abriu-me a porta com um sorriso largo, mas os olhos pareciam cansados. Os miúdos correram para mim — o Tomás e a Leonor — e encheram-me de beijos. Senti-me acolhida, mas também deslocada naquele espaço tão diferente do nosso velho apartamento em Benfica.
— Anda, mãe! Vou mostrar-te o quarto de hóspedes — disse ela, puxando-me pela mão.
O quarto era pequeno, mas arrumado com carinho. Uma manta azul na cama, flores frescas na mesa-de-cabeceira. Sentei-me e respirei fundo. Mariana sentou-se ao meu lado.
— Estás bem? — perguntou.
— Estou… só estranhei um bocadinho. A casa é bonita.
Ela sorriu, mas desviou o olhar. — Preciso mesmo que gostes daqui, mãe.
O jantar foi animado. O Pedro, marido da Mariana, chegou tarde e parecia distante. Falou pouco, sempre com o telemóvel na mão. Os miúdos contaram histórias da escola, riram-se alto. Eu tentava absorver tudo: os cheiros novos, os quadros modernos nas paredes, a ausência das fotografias antigas da família.
Depois de deitarmos as crianças, Mariana insistiu para irmos beber um chá à varanda. Estava frio, mas ela parecia precisar de falar.
— Mãe… às vezes sinto que estou a falhar em tudo — confessou de repente.
Olhei-a com surpresa. — Porquê? Tens uma família linda, uma casa bonita…
Ela encolheu os ombros. — O Pedro está sempre ausente. Eu trabalho demais. Os miúdos sentem falta do pai… E tu… sinto que me afastei de ti.
Abracei-a. — A vida muda, filha. Mas nunca deixas de ser minha menina.
Ela chorou baixinho no meu ombro. Fiquei ali até sentir que se acalmava.
Naquela noite custou-me a adormecer. Ouvi passos no corredor, vozes baixas na sala. Tentei não dar importância — talvez fosse só o Pedro ao telefone.
No sábado de manhã, Mariana estava estranhamente calada. O pequeno-almoço foi apressado; Pedro saiu cedo com uma desculpa qualquer. Fomos passear com as crianças ao parque, mas senti-a distante.
À tarde, enquanto ela preparava a sopa de feijão que eu tanto gosto, ouvi-a falar ao telefone na cozinha:
— Não posso continuar assim… Não aguento mais esta solidão ao lado dele…
O meu coração disparou. Fiquei parada no corredor, sem saber se avançava ou recuava.
— Sim… eu sei que prometi tentar… Mas ele não muda… — a voz dela tremia — Não sei quanto tempo mais consigo fingir…
De repente ouvi passos atrás de mim. Era o Tomás.
— Avó? A mãe está a chorar?
Ajoelhei-me e abracei-o forte.
— Às vezes os adultos também ficam tristes, querido.
O jantar foi estranho. Pedro voltou tarde outra vez e quase não falou connosco. Mariana serviu a sopa em silêncio; os olhos vermelhos denunciavam as lágrimas recentes.
Depois das crianças irem dormir, fui à cozinha buscar água e ouvi vozes vindas do quarto deles:
— Não aguento mais esta farsa! — era a voz da Mariana, baixa mas carregada de raiva.
— Achas que é fácil para mim? — respondeu Pedro num tom frio — Estou farto dos teus dramas!
— Eu só queria sentir-me amada outra vez…
— Então vai procurar isso noutro lado!
Senti um nó na garganta. Aquela conversa não era para os meus ouvidos… mas não consegui afastar-me.
— Não digas isso à minha mãe! Ela já perdeu tanto…
— A tua mãe não tem nada a ver com isto! — gritou Pedro.
Ouvi um barulho seco — talvez um copo atirado contra a parede — e depois silêncio.
Voltei para o meu quarto em choque. Sentei-me na cama e chorei baixinho. O mundo perfeito da minha filha estava a desmoronar-se diante dos meus olhos e eu não sabia como ajudar.
No domingo de manhã tentei agir normalmente. Mariana parecia exausta; Pedro saiu sem se despedir. As crianças brincavam no tapete da sala como se nada tivesse acontecido.
Quando chegou a hora de ir embora, Mariana acompanhou-me até à porta. Abraçou-me com força.
— Desculpa se este fim de semana não foi como esperavas…
Olhei-a nos olhos e vi ali toda a dor que ela tentava esconder do mundo.
— Filha… nunca te esqueças que estou aqui para ti. Sempre estive e sempre estarei.
Ela sorriu tristemente e acenou enquanto eu descia as escadas do prédio.
No caminho para casa senti-me vazia. Aquela conversa roubou-me o sono durante semanas. Perguntava-me onde tinha falhado como mãe; se devia ter feito mais; se devia ter dito alguma coisa naquela noite fatídica.
Agora olho para trás e percebo: há segredos que nos mudam para sempre. E há silêncios que pesam mais do que qualquer palavra dita em voz alta.
Será que alguma vez conhecemos verdadeiramente aqueles que amamos? E vocês… já passaram por algo assim nas vossas famílias?