Domingos de Silêncio: Entre Torradas e Segredos

— Vais mesmo ficar aí deitada, Sofia? — A voz da minha sogra, Dona Amélia, ecoou pelo corredor antes mesmo de eu conseguir abrir os olhos por completo. O relógio marcava 7:00 da manhã. Domingo. O dia em que, em teoria, a casa deveria respirar paz. Mas, para mim, era sempre o início de uma batalha silenciosa.

Nicholas ressonava ao meu lado, alheio ao mundo e, principalmente, à tensão que pairava no ar. Levantei-me devagar, tentando não acordá-lo. Sabia que, se ele acordasse maldisposto, o pequeno-almoço seria ainda mais insuportável. Vesti o robe e caminhei até à cozinha, onde Dona Amélia já estava de avental posto, mexendo vigorosamente no café.

— Bom dia, Dona Amélia — murmurei, tentando soar animada.

Ela nem sequer levantou os olhos. — Bom dia. O pão ainda não está cortado. E vê lá se não deixas migalhas na bancada como da última vez.

Engoli em seco. — Claro, já trato disso.

Enquanto cortava o pão, ouvi os passos pesados do meu cunhado, Ricardo, descendo as escadas. Ele nunca falava muito comigo, mas hoje parecia especialmente calado. Sentei-me à mesa com o pão e tentei sorrir para ele.

— Dormiste bem?

Ricardo apenas assentiu com a cabeça e pegou no telemóvel. O silêncio era tão denso que quase podia cortá-lo com a faca do pão.

Nicholas apareceu pouco depois, cabelo despenteado e olhos semicerrados. Sentou-se ao meu lado sem dizer palavra. Dona Amélia serviu-lhe café com um gesto brusco.

— Hoje vais à missa comigo — disse ela de repente, olhando fixamente para Nicholas.

Ele suspirou. — Mãe, já falámos sobre isto…

— Não me interessa o que falámos! O teu pai sempre foi à missa ao domingo. Não quero discussões.

O silêncio voltou a instalar-se. Eu mexia no chá, tentando não tremer. Sabia que qualquer palavra minha podia incendiar ainda mais o ambiente.

De repente, Dona Amélia virou-se para mim:

— E tu, Sofia? Quando é que vais dar-me um neto? Já estão casados há três anos…

Senti o rosto a arder. Nicholas olhou-me de relance e depois desviou o olhar para a janela.

— Ainda não é o momento certo — respondi baixinho.

Ela bufou. — Nunca é o momento certo para quem não quer responsabilidades.

Ricardo levantou-se abruptamente. — Vou sair — disse, sem olhar para ninguém.

A porta bateu com força. Nicholas levantou-se também e foi atrás dele. Fiquei sozinha com Dona Amélia.

Ela olhou-me nos olhos pela primeira vez naquela manhã.

— Não penses que não vejo o que se passa entre vocês dois. O Nicholas já não é o mesmo desde que casou contigo.

Senti as lágrimas a quererem saltar dos olhos, mas forcei um sorriso.

— Ele está apenas cansado do trabalho…

Ela interrompeu-me:

— Não me venhas com desculpas. Eu conheço o meu filho melhor do que ninguém.

Levantei-me da mesa e fui até à varanda respirar fundo. O ar fresco da manhã não conseguiu dissipar a angústia que sentia no peito. Olhei para as ruas vazias do bairro lisboeta onde vivíamos e perguntei-me como é que a minha vida tinha chegado àquele ponto.

Quando conheci Nicholas na faculdade, ele era divertido, apaixonado pela vida e fazia-me rir como ninguém. Mas desde que nos mudámos para casa da mãe dele — por causa das dificuldades financeiras depois de perdermos os empregos — tudo mudou. A casa era grande mas fria, cheia de regras e silêncios pesados.

Voltei para dentro e encontrei Nicholas sentado no sofá da sala, cabeça entre as mãos.

— Está tudo bem? — perguntei suavemente.

Ele não respondeu de imediato. Depois levantou os olhos vermelhos para mim.

— Não aguento mais isto, Sofia. A minha mãe… esta casa… sinto-me sufocado.

Sentei-me ao lado dele e segurei-lhe a mão.

— Podemos procurar outro sítio para viver… arranjar um quarto pequeno… qualquer coisa…

Ele abanou a cabeça.

— Não temos dinheiro suficiente. E eu não quero deixar a minha mãe sozinha com o Ricardo assim…

Ficámos em silêncio durante alguns minutos. Depois ouvi passos atrás de nós: Dona Amélia estava à porta da sala.

— Se querem discutir a vossa vida conjugal, façam-no noutro lado. Aqui é a minha casa e exijo respeito.

Nicholas levantou-se num salto.

— Mãe, por favor…

Ela ergueu a mão para o calar.

— Já chega! Estou farta desta falta de gratidão! Dei-vos teto e comida quando mais precisavam e é assim que me pagam?

Senti-me pequena como uma criança apanhada em falta. Nicholas olhou para mim com um misto de raiva e desespero.

Naquela noite, depois de um dia inteiro sem trocarmos palavra com Dona Amélia, Nicholas entrou no quarto com uma decisão tomada.

— Vou aceitar aquele trabalho em Faro — disse ele baixinho.

Olhei para ele incrédula.

— Mas… isso fica tão longe… E a tua mãe?

Ele suspirou.

— Não posso continuar aqui, Sofia. Se ficarmos mais tempo nesta casa vamos acabar por nos odiar todos. Preciso de recomeçar noutro sítio… contigo.

Senti uma mistura de alívio e medo. Alívio por finalmente termos uma saída; medo do desconhecido e do que isso significaria para nós enquanto casal e família.

No dia seguinte, ao pequeno-almoço, Nicholas anunciou a decisão à mãe:

— Mãe, vou aceitar um trabalho em Faro. Eu e a Sofia vamos mudar-nos no próximo mês.

Dona Amélia ficou imóvel durante alguns segundos antes de largar a chávena na mesa com força suficiente para fazer saltar café para a toalha branca.

— Então é assim? Vais abandonar-me? Depois de tudo?

Ricardo entrou na cozinha nesse momento e ficou parado à porta, ouvindo tudo em silêncio.

Nicholas tentou explicar:

— Não te estou a abandonar, mãe. Preciso de viver a minha vida…

Ela levantou-se abruptamente e saiu da cozinha sem dizer mais nada. O silêncio ficou ainda mais pesado do que antes.

Durante as semanas seguintes, os dias foram feitos de caixas de cartão e despedidas silenciosas. Dona Amélia quase não nos dirigiu palavra até ao último dia. Quando finalmente fechámos a porta atrás de nós, senti um peso sair-me dos ombros — mas também uma tristeza profunda por tudo o que deixávamos para trás.

Em Faro, começámos do zero: casa pequena, móveis em segunda mão e empregos modestos. Mas havia algo novo entre nós: esperança. Pela primeira vez em anos, Nicholas voltou a sorrir genuinamente; eu voltei a dormir noites inteiras sem acordar sobressaltada com discussões ou cobranças veladas.

Ainda assim, havia dias em que sentia falta daquela casa grande em Lisboa — dos cheiros familiares do café acabado de fazer e até dos silêncios desconfortáveis à mesa do pequeno-almoço. Perguntava-me se Dona Amélia estaria bem sozinha com Ricardo; se algum dia me perdoaria por ter levado o filho embora; se algum dia eu própria conseguiria perdoar-me por isso.

Agora escrevo esta história sentada à janela do nosso novo lar no Algarve, ouvindo Nicholas rir-se na cozinha enquanto prepara torradas queimadas (como sempre). Pergunto-me: será possível reconstruir uma família depois de tantas feridas? Ou será que algumas cicatrizes ficam para sempre?