O Regresso Amargo: Quando o Dinheiro Fala Mais Alto que o Sangue
— Só cem euros, pai? — A voz do Rui cortou o silêncio da sala como uma faca. — Hoje em dia isso mal chega para comprar um par de sapatilhas decentes à Leonor.
Fiquei parado, com o envelope ainda na mão, sentindo o rubor subir-me ao rosto. A Leonor olhava para mim, olhos grandes e brilhantes, sem perceber a tensão que se instalava entre os adultos. A minha filha, Mariana, desviou o olhar, envergonhada. Eu tinha acabado de chegar de França, depois de vinte anos a trabalhar nas obras, a juntar cada cêntimo para dar uma vida melhor à minha família. E agora, no aniversário da minha neta, era recebido com esta ingratidão.
— Rui, não é preciso… — tentou Mariana, mas ele interrompeu-a com um gesto brusco.
— Não é preciso? O teu pai esteve fora duas décadas! Achas que cem euros é generosidade? Se calhar lá em França isso não é nada, mas aqui… — Ele riu-se, sarcástico. — Aqui também não chega para nada.
Senti um nó na garganta. Tantas noites sozinho num quarto húmido em Saint-Denis, tantas horas de trabalho duro, só para ouvir isto? Olhei para Leonor e forcei um sorriso.
— Parabéns, querida. Espero que gostes do presente.
Ela abraçou-me com força. O Rui virou costas e saiu da sala. O silêncio ficou pesado, quase sufocante.
Naquela noite, não consegui dormir. Ouvia os risos abafados vindos do quarto da Leonor e as vozes baixas da Mariana e do Rui a discutir na cozinha. Lembrei-me dos telefonemas apressados ao domingo, das promessas de que tudo ia valer a pena. Mas agora sentia-me um estranho na minha própria casa.
No dia seguinte, tentei falar com Mariana enquanto ela preparava o pequeno-almoço.
— Filha, o Rui sempre foi assim?
Ela suspirou, sem me encarar.
— Ele mudou muito nos últimos anos. Está sempre preocupado com dinheiro. Diz que tudo está caro, que nunca chega para nada… E eu… eu tento equilibrar as coisas.
— Mas eu vim para ajudar! — protestei. — Não vim para ser tratado como um forasteiro.
Ela pousou a faca e olhou-me nos olhos.
— Pai, tu estiveste longe muito tempo. As coisas mudaram. Nós mudámos.
Essas palavras ficaram a ecoar-me na cabeça durante dias. Tentei aproximar-me do Rui, convidei-o para um café na pastelaria da esquina.
— Olha, Rui, sei que não foi fácil para ti com a minha ausência. Mas estou aqui agora. Quero ajudar no que puder.
Ele encolheu os ombros.
— Não é nada contigo, senhor António. Só acho que podias ser mais generoso. A Leonor merece tudo do bom e do melhor.
— E achas que é o dinheiro que lhe vai dar isso? — perguntei, já sem conseguir esconder a irritação.
Ele riu-se de novo.
— O dinheiro não compra felicidade, mas ajuda muito. E tu devias saber disso melhor do que ninguém.
Levantei-me abruptamente e saí dali antes que dissesse algo de que me pudesse arrepender. Passei o resto do dia a vaguear pela cidade, sentindo-me cada vez mais deslocado. Lisboa estava diferente — mais barulhenta, mais apressada — e eu também já não era o mesmo homem que partira há vinte anos.
Os dias seguintes foram um desfile de pequenas humilhações: o Rui a reclamar das contas da casa, a Mariana a tentar apaziguar tudo com sorrisos forçados, a Leonor cada vez mais distante porque sentia o ambiente pesado. Uma noite ouvi-os discutir alto:
— O teu pai só veio cá para mandar bitaites! — gritava o Rui. — Se quer ajudar tanto assim, que pague as contas todas!
— Ele já faz muito! — defendia Mariana. — Tu é que nunca estás satisfeito!
Senti-me impotente. Não queria ser motivo de discórdia entre eles. Pensei em voltar para França, mas só de imaginar deixar a Leonor outra vez… O coração apertava-se-me no peito.
Uma tarde, ao regressar do supermercado, encontrei a Leonor sentada nas escadas do prédio, olhos vermelhos de chorar.
— O que se passa, querida?
Ela hesitou antes de responder:
— O pai disse que tu és egoísta porque não dás mais dinheiro…
Ajoelhei-me à frente dela e segurei-lhe as mãos.
— Sabes, Leonor… O avô trabalhou muito tempo longe para vos dar uma vida melhor. Mas há coisas mais importantes do que dinheiro: o amor, o respeito… Isso ninguém pode comprar.
Ela abraçou-me com força e chorou no meu ombro. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim — não contra ela ou contra Mariana, mas contra este mundo onde tudo parece girar à volta do dinheiro.
Nessa noite tomei uma decisão: ia confrontar o Rui uma última vez.
Esperei até ele chegar do trabalho e pedi-lhe para falarmos na varanda.
— Rui, isto não pode continuar assim. Eu não sou um banco. Sou pai da Mariana e avô da Leonor. Vim para estar com vocês, não para ser explorado ou desrespeitado.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em semanas.
— Então porque é que voltou? Para quê? Para nos julgar?
— Voltei porque tenho saudades da minha família! Porque quero recuperar o tempo perdido! Mas se só me vês como uma carteira ambulante… então talvez seja melhor ir embora outra vez.
Ele ficou calado durante uns segundos eternos. Depois baixou os olhos e murmurou:
— Eu só quero o melhor para a Leonor…
— Então começa por dar-lhe um exemplo melhor — respondi, firme.
Na manhã seguinte encontrei um bilhete da Mariana na mesa da cozinha: “Pai, desculpa por tudo isto. Amo-te muito. Vamos tentar resolver juntos.” Senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto enquanto lia aquelas palavras simples mas tão carregadas de significado.
Hoje continuo aqui em Lisboa. As coisas não estão perfeitas — talvez nunca estejam — mas aprendi que os laços familiares são frágeis e precisam de ser cuidados todos os dias. O Rui ainda é distante comigo, mas já não há gritos nem acusações constantes. A Leonor voltou a sorrir quando me vê e isso basta-me por agora.
Às vezes pergunto-me: será que fiz bem em voltar? Ou será que há feridas que nunca se curam? O que vale mais: o dinheiro ou o amor de uma família? Gostava de saber o que vocês fariam no meu lugar.