Véspera de Ano Novo: Entre o Barulho da Festa e o Silêncio do Meu Coração
— Outra vez, Inês? Vais mesmo insistir nisso? — A voz do Ricardo ecoa pela sala, carregada de impaciência, enquanto segura o telemóvel com a lista de convidados aberta.
Sinto o peito apertar. O relógio marca 19h do dia 31 de dezembro e a casa já cheira a bacalhau com natas, mas o aroma não me consola. O meu olhar fixa-se na janela, onde as luzes da cidade piscam como promessas que nunca se cumprem.
— Ricardo, eu só queria um Ano Novo diferente. Só nós os dois, sem barulho, sem confusão… — Tento manter a voz firme, mas ela treme como uma folha ao vento.
Ele suspira, exasperado. — Mas é tradição! Sempre fizemos festas grandes! Os meus pais já estão a contar com isto, os teus irmãos também… Não podes pedir-me para mudar tudo agora.
A palavra “tradição” pesa sobre mim como uma sentença. Desde que casei com o Ricardo, há sete anos, as festas de Ano Novo são sempre iguais: casa cheia, música alta, crianças a correr pelos corredores, discussões sobre futebol e política à mesa. E eu, sempre a sorrir para não desiludir ninguém.
Mas este ano é diferente. Este ano sinto-me cansada. Não só do ruído, mas da solidão que cresce dentro de mim mesmo rodeada de gente. Desde que perdi o meu pai em março, tudo mudou. O luto é um silêncio que ninguém parece ouvir.
— Inês, não percebo — diz ele, baixando finalmente o telemóvel. — O que se passa contigo? Estás estranha há meses.
Quero gritar-lhe que estou cansada de fingir. Que não aguento mais ser a anfitriã perfeita quando por dentro estou desfeita. Mas as palavras ficam presas na garganta.
— Só queria um momento nosso — murmuro. — Só isso.
Ele aproxima-se e tenta abraçar-me, mas eu recuo instintivamente. Sinto-me culpada por afastá-lo, mas não consigo evitar.
— Olha, Inês… — começa ele, hesitante. — Se quiseres, podemos ir jantar fora amanhã. Só nós dois. Mas hoje… hoje a festa já está planeada.
Oiço os risos dos meus sobrinhos no corredor e o tilintar dos copos na cozinha. A minha mãe aparece à porta da sala com um sorriso cansado.
— Está tudo bem? — pergunta ela, olhando de um para o outro.
Ricardo responde antes de mim: — Está tudo ótimo, D. Teresa! A Inês só está um bocadinho nervosa com os preparativos.
Sinto-me invisível. Ninguém percebe o que realmente se passa comigo. Nem sequer eu sei explicar bem este vazio.
A noite avança entre brindes forçados e conversas superficiais. O meu irmão Pedro discute futebol com o Ricardo; a minha cunhada Marta critica as escolhas musicais; as crianças correm atrás do cão pela casa fora. Eu circulo entre os convidados com uma bandeja de rissóis e um sorriso colado ao rosto.
Por volta das onze e meia, refugio-me na varanda para respirar. O frio da noite corta-me a pele e faz-me sentir viva pela primeira vez em semanas. Lá em baixo, vejo casais abraçados à espera do novo ano. Sinto inveja daquela cumplicidade silenciosa.
Oiço passos atrás de mim. É a minha mãe.
— Inês… — diz ela suavemente. — Queres conversar?
Olho para ela e vejo nos seus olhos a mesma tristeza que carrego desde março.
— Sinto tanto a falta do pai… — confesso finalmente, deixando as lágrimas caírem sem vergonha.
Ela abraça-me com força. — Eu também, filha. Mas não te feches assim… O Ricardo gosta tanto de ti. Só não percebe o que se passa.
— Ele só pensa na festa… — protesto baixinho.
— Ele tenta manter tudo igual para não sentir a perda — diz ela com sabedoria. — Cada um lida com a dor à sua maneira.
Ficamos ali em silêncio até ouvirmos a contagem decrescente lá dentro: “Dez! Nove! Oito!…”
Volto para dentro a tempo de ver todos abraçados e a gritar “Feliz Ano Novo!” Sinto-me deslocada, como se fosse uma figurante na minha própria vida.
Ricardo aproxima-se e tenta beijar-me. Eu deixo, mas não sinto nada. Ele percebe e afasta-se magoado.
Mais tarde, quando todos já dormem ou foram embora, sentamo-nos no sofá em silêncio. Ele olha para mim com olhos cansados.
— Inês… isto não pode continuar assim. Preciso de ti comigo. Preciso da mulher por quem me apaixonei.
As palavras dele magoam-me mais do que gostaria de admitir.
— E eu preciso que me vejas como sou agora — respondo baixinho. — Não sou a mesma desde que o pai morreu. Preciso de tempo… preciso de ti ao meu lado, mas não em festas nem multidões.
Ele segura-me a mão pela primeira vez em meses sem pressa nem exigências.
— Desculpa… Eu só queria ver-te feliz outra vez.
Choramos juntos pela primeira vez desde março. Pela primeira vez sinto que talvez haja esperança para nós.
Agora escrevo estas palavras enquanto olho para ele a dormir no sofá ao meu lado, exausto mas sereno.
Pergunto-me: quantas vezes nos perdemos uns dos outros porque temos medo de mostrar as nossas feridas? Será que é possível reconstruir o amor quando tudo parece desmoronar?
E vocês? Já sentiram este vazio no meio do barulho? Como encontraram o caminho de volta?