Sei que falhei como mãe: O regresso após anos de silêncio

— Não tens vergonha, Teresa? — A voz da minha mãe ecoou pelo corredor, fria como o mármore da entrada. — Dez anos! Dez anos sem uma palavra, e agora voltas assim, de malas feitas?

O cheiro a café queimado misturava-se com o perfume antigo das paredes húmidas do prédio em Arroios. Eu estava ali, parada, com as mãos a tremer e o coração a bater tão forte que quase me sufocava. Olhei para ela, para os olhos cansados de quem criou um neto como se fosse filho, e não consegui responder. O peso da culpa era maior do que qualquer resposta.

Miguel estava no quarto, ouvi os passos dele a arrastar-se pelo soalho de madeira. Tinha agora catorze anos. A última vez que o vi, era um menino de caracóis dourados e sorriso fácil. Agora, era um adolescente fechado, com auscultadores sempre nos ouvidos e um olhar que me atravessava como se eu fosse invisível.

— Mãe… — tentei começar, mas a minha voz saiu rouca. — Eu sei que não há desculpa. Mas preciso de falar com o Miguel.

A minha mãe cruzou os braços. — Ele não quer saber de ti. Não vês? Cresceu sem ti. Foste tu que escolheste ir embora.

Fechei os olhos por um instante. Lembrei-me da noite em que parti: o choro abafado do Miguel, o bilhete apressado deixado na mesa da cozinha. “Volto quando puder ser melhor mãe”, escrevi. Mas nunca pensei que esse dia demorasse tanto a chegar.

Subi as escadas até ao quarto dele. Bati à porta.

— Miguel? Posso entrar?

Silêncio. Depois, um som abafado de música. Entrei devagar. Ele estava sentado na cama, de costas para mim, a olhar para o telemóvel.

— Miguel… — Sentei-me na beira da cama, sentindo o colchão afundar sob o meu peso e a distância entre nós tornar-se quase física.

Ele não olhou para mim. — O que é que queres?

A pergunta era simples, mas cortante.

— Quero pedir-te desculpa. Quero explicar-te porque fui embora.

Ele riu-se, um riso seco e amargo. — Agora? Depois de dez anos? Achas que interessa?

Senti as lágrimas a quererem cair, mas forcei-me a manter a voz firme.

— Eu estava perdida, Miguel. Tinha vinte e três anos, sem emprego, sem apoio… Achei que te fazia mais mal do que bem. A tua avó podia dar-te estabilidade. Eu só tinha medo.

Ele virou-se finalmente para mim. Os olhos dele eram os meus, mas cheios de mágoa.

— E achaste que fugir era melhor? Que deixar-me aqui era amor?

Não soube responder. O silêncio entre nós era pesado. Ouvi ao longe o som da televisão na sala, a minha mãe a resmungar baixinho.

— Sabes quantas vezes esperei por ti? — continuou ele, a voz a tremer. — Nos aniversários, no Natal… Todos diziam que ias voltar. Mas nunca voltaste.

A dor dele era um espelho da minha própria dor. Senti-me pequena, encolhida naquela cama onde tantas vezes o embalei em bebé.

— Tentei escrever-te cartas — disse eu baixinho. — Mas nunca tive coragem de as enviar.

Ele encolheu os ombros. — Agora já não interessa.

Fiquei ali sentada, sem saber se devia insistir ou sair dali para sempre. O tempo parecia ter parado naquele quarto pequeno cheio de posters de bandas portuguesas e livros escolares espalhados pelo chão.

No dia seguinte, acordei cedo com o som das panelas na cozinha. A minha mãe preparava o pequeno-almoço como se nada tivesse mudado.

— Vais ficar muito tempo? — perguntou ela sem me olhar nos olhos.

— Não sei — respondi. — Só quero tentar falar com ele.

Ela suspirou fundo. — O Miguel sofreu muito contigo longe. Não é fácil perdoar assim de repente.

Assenti em silêncio. Passei o dia a vaguear pela cidade, revendo lugares onde fui feliz e infeliz: o jardim da Estrela onde brincava com o Miguel em bebé; o café onde conheci o pai dele — um homem que desapareceu tão depressa quanto apareceu; a ponte 25 de Abril vista ao longe, símbolo de tudo o que queria atravessar e nunca consegui.

À noite, sentei-me à mesa com eles. O jantar foi silencioso, apenas o som dos talheres contra os pratos.

— Amanhã tenho teste de Matemática — disse Miguel de repente, sem me olhar.

— Precisas de ajuda? — perguntei, esperançosa.

Ele abanou a cabeça. — A avó ajuda-me.

O nó na garganta apertou-se ainda mais. Senti-me uma estranha na minha própria família.

Os dias passaram assim: tentativas falhadas de aproximação, silêncios pesados, olhares fugidios. Uma tarde, encontrei uma das minhas cartas antigas numa gaveta do quarto da minha mãe. Estava amarelada pelo tempo:

“Miguel,
Se algum dia leres isto, quero que saibas que te amo mais do que tudo neste mundo. Fui embora porque achei que era melhor para ti. Espero que um dia me possas perdoar.
A tua mãe”

Levei a carta até ele.

— Escrevi isto há muitos anos — disse-lhe, estendendo-lhe o papel.

Ele leu em silêncio. Vi-lhe as mãos a tremerem ligeiramente.

— Porque é que nunca enviaste?

— Porque tinha vergonha do que fiz. Porque achei que não merecia ser tua mãe.

Ele ficou calado durante muito tempo. Depois levantou-se e saiu do quarto sem dizer palavra.

Nessa noite ouvi-o chorar baixinho no quarto ao lado. Quis abraçá-lo, mas não tive coragem.

No domingo seguinte, decidi ir embora. Arrumei as malas em silêncio. Quando estava prestes a sair, Miguel apareceu à porta do meu quarto.

— Vais outra vez?

Olhei para ele com lágrimas nos olhos.

— Não quero ir… Mas não sei se consigo ficar se tu não quiseres falar comigo.

Ele aproximou-se devagar e abraçou-me pela primeira vez desde que voltei.

— Não sei se consigo perdoar já… Mas também não quero perder-te outra vez.

Chorei no ombro dele como nunca chorei antes. A minha mãe apareceu à porta e ficou ali parada, emocionada mas sem dizer nada.

Ficámos assim muito tempo, abraçados no meio das malas por desfazer.

Hoje ainda não sei se algum dia serei perdoada por completo. Mas aprendi que às vezes amar é ficar mesmo quando tudo dói e parece impossível recomeçar.

Será possível reconstruir uma família depois de tanta dor? Quantos de nós carregam culpas antigas à espera de um perdão que talvez nunca venha?