Se Não Vais Jantar com a Minha Família, Pelo Menos Cozinha e Põe a Mesa, Depois Vais-te Embora!

— Mariana, já te disse: se não vais jantar connosco, pelo menos cozinha e põe a mesa. Depois podes ir embora! — A voz do Rui ecoou pela cozinha, fria como o azulejo sob os meus pés.

Fiquei ali parada, com as mãos ainda molhadas da loiça, a olhar para ele como se não o conhecesse. O cheiro do refogado misturava-se com o amargo da mágoa que me subia à garganta. Seis meses tinham passado desde aquela noite em casa dos pais dele, quando tudo desabou. Seis meses desde que a mãe dele me chamou de ingrata, de má esposa, só porque recusei ajudar a limpar depois do jantar de Natal. Eu estava exausta, grávida de sete meses, mas isso não importou. O Rui ficou calado naquela noite. E eu nunca mais fui a mesma.

Agora, ele queria que eu continuasse a servir aquela família como se nada tivesse acontecido. Como se eu não tivesse ouvido cada palavra venenosa, cada olhar de desdém. Ele queria que eu cozinhasse para eles, pusesse a mesa com o melhor serviço da minha mãe — aquele que guardei para ocasiões especiais — e depois desaparecesse antes de todos chegarem. Como se eu fosse uma empregada invisível.

— Rui, achas mesmo justo? — perguntei, tentando controlar o tremor na voz. — Achas que é assim que se resolve isto? Fingindo que nada aconteceu?

Ele suspirou, passando as mãos pelo cabelo castanho já com alguns fios brancos. — Mariana, eles são a minha família. Não posso simplesmente cortar relações por tua causa. Mas também não quero obrigar-te a estar com eles se não te sentes bem. Só peço que ajudes um pouco… Não compliques.

Não compliques. Como se fosse simples. Como se não fosse ele quem complicava tudo ao recusar-se a ver o que me magoava. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

— Rui, tu lembras-te do que a tua mãe me disse? Lembras-te do silêncio do teu pai? Da tua irmã a rir-se nas minhas costas? Eu estava grávida! E tu ficaste calado!

Ele desviou o olhar, envergonhado. — Eu sei… Mas já passou.

— Para ti passou! Para mim não! — A minha voz saiu mais alta do que queria. O nosso filho, Tomás, começou a chorar no quarto ao lado. Fui buscá-lo, sentindo o peso de tudo aquilo nos braços e no peito.

Enquanto embalava o Tomás, lembrei-me de como era tudo diferente no início. Quando conheci o Rui na faculdade do Porto, ele era divertido, atencioso, fazia-me sentir especial. Os jantares em casa dos pais dele eram animados, cheios de histórias e gargalhadas. Mas depois do casamento tudo mudou. Pequenas críticas começaram a surgir: “A Mariana não sabe fazer arroz malandro como eu gosto”, “A Mariana devia vestir-se melhor para os jantares”, “A Mariana não ajuda como as outras noras”.

No início, tentei agradar. Esforcei-me para aprender as receitas da sogra, comprei roupas novas para os almoços de domingo, sorri mesmo quando me apetecia chorar. Mas nada era suficiente. E o Rui… O Rui nunca me defendeu.

Agora, com o Tomás nos braços, sentia-me sozinha como nunca. O Rui voltou à cozinha e ficou à porta, hesitante.

— Mariana… Eu só quero paz aqui em casa. Não aguento mais esta tensão.

Olhei para ele e vi um homem cansado, dividido entre duas lealdades. Mas também vi alguém incapaz de lutar por mim.

— E eu? Não mereço paz? Não mereço respeito?

Ele não respondeu. Ficámos ali em silêncio, apenas o som do Tomás a acalmar-se no meu colo.

No dia seguinte acordei cedo para preparar o jantar da família dele. Cada corte na cebola era uma facada no orgulho. Fiz arroz de pato — o prato preferido do sogro — e preparei uma sobremesa que aprendi com a minha mãe: leite-creme queimado na hora.

Enquanto punha a mesa com o serviço bonito, as mãos tremiam-me. Cada prato era um lembrete da minha invisibilidade naquela casa. Quando terminei, vesti o casaco e peguei no Tomás.

O Rui apareceu à porta da sala.

— Vais sair?

— Vou dar uma volta com o Tomás. Não quero estar cá quando eles chegarem.

Ele assentiu em silêncio. Vi nos olhos dele um pedido de desculpa que nunca chegou a sair.

Andei pelas ruas do bairro sem destino certo. O Tomás dormia tranquilo no carrinho enquanto eu chorava baixinho, misturando as lágrimas com a chuva miudinha que começava a cair.

Lembrei-me da minha mãe e de como ela sempre dizia: “Nunca deixes ninguém apagar quem tu és”. Mas era isso mesmo que sentia: apagada, anulada por uma família que nunca me aceitou verdadeiramente.

Quando voltei para casa já passava das dez da noite. A família do Rui tinha ido embora; encontrei-o sozinho na sala, sentado no escuro.

— Mariana… — começou ele, mas calei-o com um gesto.

— Rui, isto não pode continuar assim. Ou tu escolhes lutar por mim e pelo nosso filho… ou então cada um segue o seu caminho.

Ele ficou em silêncio durante muito tempo. Depois levantou-se e veio até mim.

— Eu amo-te, Mariana. Mas não sei como fazer isto sem magoar alguém.

— Já me estás a magoar há meses — respondi baixinho.

Naquela noite dormimos de costas voltadas. Senti o peso da decisão pairar sobre nós como uma nuvem negra.

Os dias seguintes foram feitos de silêncios e pequenas discussões. O Rui tentava compensar com gestos: trazia flores, fazia o jantar, brincava mais com o Tomás. Mas nada disso curava a ferida aberta entre nós.

Uma tarde, recebi uma mensagem da sogra: “Se quiseres conversar como mulheres adultas, estou disponível”. Fiquei horas a olhar para aquelas palavras no telemóvel. Queria acreditar que era sincera, mas conhecia demasiado bem aquele tom passivo-agressivo.

Mostrei ao Rui e ele implorou-me para aceitar.

— Por favor, Mariana… Faz isto por nós.

Fui ao café onde combinámos encontrar-nos. A minha sogra chegou pontual, impecável como sempre.

— Mariana… — começou ela — Sei que as coisas não têm sido fáceis entre nós. Mas somos família.

— Família é respeito — respondi sem rodeios.

Ela suspirou e pela primeira vez vi vulnerabilidade nos olhos dela.

— Talvez tenha sido dura demais contigo… Mas também tens de perceber que és diferente do que estamos habituados nesta família.

— Não sou obrigada a ser igual a ninguém — disse-lhe calmamente.

Conversámos durante quase uma hora. Não houve pedidos de desculpa explícitos nem grandes reconciliações. Mas senti que algo tinha mudado: ela percebeu finalmente que eu não ia desaparecer só porque ela queria.

Quando cheguei a casa contei tudo ao Rui. Ele abraçou-me como há muito não fazia.

— Obrigado por tentares…

— Não fiz isto por eles — respondi — Fiz por mim e pelo Tomás.

Os meses passaram e as coisas melhoraram um pouco. Ainda há silêncios desconfortáveis nos jantares de família e olhares atravessados quando faço algo “à minha maneira”. Mas aprendi a impor limites e o Rui começou finalmente a perceber que ser marido é mais do que agradar à mãe.

Às vezes pergunto-me: quantas mulheres vivem assim? Quantas Marianas existem em Portugal, presas entre dois mundos? Será possível amar alguém sem perdermos quem somos?