Rachaduras na Felicidade: Entre o Amor e o Adeus

— Não me olhes assim, Catarina. Eu só quero conversar. — A minha voz saiu mais baixa do que eu queria, quase um sussurro, mas ela nem sequer levantou os olhos do telemóvel.

O relógio da cozinha marcava 22h17. A nossa filha, Leonor, já dormia há uma hora. O silêncio entre nós era tão pesado que até o tique-taque do relógio parecia um grito. Sentei-me à mesa, as mãos trémulas a brincar com a chávena de chá frio.

— Conversar sobre o quê, Miguel? — Ela finalmente largou o telemóvel, mas o olhar era duro, cansado. — Sobre como já não somos os mesmos? Ou vais dizer outra vez que andas cansado do trabalho?

Senti um nó na garganta. Não era só o trabalho. Era tudo. Era a rotina que nos engolia, era a distância que crescia mesmo quando estávamos sentados lado a lado no sofá. Era o medo de admitir que talvez já não nos amássemos como antes.

— Catarina… — comecei, mas ela interrompeu-me com um gesto brusco.

— Não me venhas com desculpas. — A voz dela tremeu, e por um segundo vi lágrimas nos olhos dela. — Eu também estou cansada. Cansada de fingir que está tudo bem.

O silêncio voltou, mais denso ainda. Lembrei-me de quando nos conhecemos na faculdade do Porto, das noites em que ríamos até às lágrimas, dos sonhos partilhados de uma casa cheia de filhos e viagens pelo mundo. Agora, mal conseguíamos partilhar uma refeição sem discussões ou silêncios constrangedores.

Naquela noite, depois de Catarina se fechar no quarto — já era hábito dormirmos em camas separadas há meses — fiquei na sala escura a pensar onde tudo tinha começado a correr mal. Talvez tenha sido quando perdi o emprego na consultora e passei meses em casa, a sentir-me inútil. Ou talvez tenha sido quando ela começou a trabalhar horas extra no hospital e eu fiquei a cuidar da Leonor sozinho.

No início, achei que era só uma fase. Mas as fases passaram e as mágoas ficaram. Pequenas discussões tornaram-se tempestades. Uma toalha molhada no chão era motivo para gritos. Um jantar queimado era desculpa para dormir de costas voltadas.

Uma noite, depois de mais uma discussão sobre dinheiro — sempre o dinheiro — ouvi Catarina ao telefone com a mãe:

— Eu já não sei o que fazer, mãe. O Miguel não fala comigo, parece que estamos a viver juntos só por causa da Leonor…

Senti-me traído e aliviado ao mesmo tempo. Não era só eu que sentia o peso da distância.

No trabalho, os colegas perguntavam se estava tudo bem em casa. Eu sorria e dizia que sim. Em Portugal, ninguém gosta de falar dos problemas do lar. Mas eu sentia-me cada vez mais sozinho.

Certa manhã, enquanto levava Leonor à escola, ela perguntou:

— Pai, porque é que tu e a mãe já não riem juntos?

Fiquei sem resposta. O coração apertou-se-me no peito. O que é que estávamos a ensinar à nossa filha? Que o amor é feito de silêncios e mágoas?

Comecei a sair mais cedo do trabalho só para andar pelas ruas do Porto sem rumo. Sentava-me num banco dos Aliados a ver os turistas e os estudantes cheios de vida. Sentia inveja daquela leveza.

Uma tarde encontrei o Rui, um velho amigo da faculdade. Ele olhou para mim com aquele olhar de quem percebe tudo sem precisar de perguntar.

— Estás bem? — perguntou ele.

— Não sei — respondi honestamente.

Fomos beber um café à Ribeira e contei-lhe tudo. O Rui ouviu em silêncio e depois disse:

— Às vezes, Miguel, amar também é saber quando deixar ir.

Essas palavras ficaram comigo durante semanas. Amar é saber deixar ir? E se eu estivesse apenas a fugir dos problemas? E se ainda houvesse salvação para nós?

Tentei falar com Catarina sobre terapia de casal. Ela riu-se amargamente:

— Achas mesmo que um estranho vai resolver o que nós não conseguimos resolver em casa?

Desisti da ideia. Mas continuei a pensar nela todas as noites em que ficava acordado a ouvir o som da chuva contra as janelas do nosso apartamento.

O Natal aproximava-se e tentei recuperar alguma normalidade para Leonor. Montámos juntos a árvore de Natal enquanto Catarina trabalhava no hospital. Quando ela chegou a casa e viu as luzes acesas e Leonor feliz, sorriu pela primeira vez em meses.

— Está bonita — disse ela baixinho.

Por um momento, pensei que talvez ainda houvesse esperança.

Mas na noite da consoada, depois de Leonor adormecer no sofá com um livro nas mãos, Catarina sentou-se ao meu lado e disse:

— Miguel… eu não sei se consigo continuar assim.

O mundo parou por um segundo. Olhei para ela e vi nos olhos dela o mesmo medo que sentia em mim.

— Eu também não sei — confessei.

Chorámos juntos pela primeira vez em anos. Chorámos pelo amor perdido, pelos sonhos adiados, pela família que tentávamos salvar sem saber como.

Nos dias seguintes falámos muito. Sobre nós, sobre Leonor, sobre o futuro. Decidimos dar-nos algum tempo separados. Arrendei um pequeno apartamento perto do trabalho e passava os fins de semana com Leonor.

A solidão foi dura no início. Senti falta do cheiro do café de manhã, das pequenas rotinas partilhadas. Mas também comecei a redescobrir-me: voltei a correr junto ao Douro, reencontrei amigos antigos, comecei até a pintar — algo que sempre quis fazer mas nunca tive coragem.

Catarina também mudou. Parecia mais leve quando vinha buscar Leonor aos fins de semana. Às vezes conversávamos sobre banalidades e até ríamos juntos.

Um dia Leonor perguntou:

— Pai, tu e a mãe vão voltar a viver juntos?

Abracei-a com força e disse-lhe:

— Não sei, filha. Mas prometo-te que vamos ser sempre família.

Hoje olho para trás e vejo quanto cresci neste processo doloroso. Percebo agora que ficar por medo é tão destrutivo como partir por egoísmo. Às vezes amar é aceitar que o amor muda — e que mudar também é uma forma de amar.

Pergunto-me muitas vezes: quantos casais vivem assim, presos entre o medo de partir e o medo de ficar? Será que temos coragem de escolher aquilo que realmente nos faz felizes?