Quando Olhei nos Olhos do Meu Pai, Vi Apenas Arrependimento

— Não quero ouvir mais nada sobre esse homem! — gritou a minha mãe, Teresa, com os olhos vermelhos de raiva e cansaço. Eu tinha acabado de perguntar, pela milésima vez, porque é que o meu pai nos tinha deixado. O silêncio que se seguiu foi tão pesado que quase me sufocou. Senti o peito apertado, como se cada palavra não dita fosse um peso a mais nos meus ombros magros de adolescente.

Cresci em Almada, num T2 pequeno, paredes finas e vizinhos que sabiam mais da nossa vida do que eu própria. A minha mãe trabalhava no supermercado do bairro, sempre de bata azul e sorriso forçado. Eu era a filha da Teresa, aquela cujo pai tinha fugido quando ela era pequena. Pelo menos era isso que todos diziam, e eu nunca tive coragem de perguntar mais.

Mas naquela noite, depois da discussão, não consegui dormir. Fiquei a olhar para o teto, a ouvir o som dos carros na rua e a pensar: será mesmo verdade? Porque é que nunca vi uma única fotografia dele? Porque é que a minha mãe mudava de assunto sempre que eu perguntava?

O tempo passou. Fiz-me mulher entre silêncios e meias verdades. Tinha 21 anos quando tudo mudou. Era uma tarde quente de julho, estava sozinha em casa a estudar para os exames da faculdade, quando alguém bateu à porta. O som ecoou pelo corredor como um trovão.

Abri a porta devagar. Do outro lado estava um homem alto, cabelo grisalho, olhos castanhos iguais aos meus. Vestia uma camisa simples e segurava um envelope nas mãos trémulas.

— Olá… — disse ele, hesitante. — És a Inês?

Fiquei sem ar. O nome dele escapou-se-me dos lábios antes de conseguir controlar:

— António?

Ele assentiu, com um sorriso triste.

— Posso entrar? Só preciso de uns minutos…

O coração batia-me tão forte que pensei que ia desmaiar. Deixei-o entrar. Sentou-se à mesa da cozinha, no mesmo lugar onde tantas vezes imaginei o meu pai sentado.

— A tua mãe não vai gostar disto… — murmurou ele.

— Ela não está — respondi, tentando parecer mais forte do que me sentia.

Ele abriu o envelope e tirou de lá uma fotografia antiga: eu bebé ao colo dele, ambos a sorrir. O chão pareceu fugir-me dos pés.

— Inês… Eu nunca vos abandonei. A tua mãe… ela pediu-me para sair. Disse que era melhor assim.

As palavras dele caíram como pedras. Senti raiva, confusão, tristeza — tudo ao mesmo tempo.

— Porque é que ela faria isso? — perguntei, quase num sussurro.

Ele olhou-me nos olhos. Não vi raiva ali, só um cansaço profundo e um arrependimento que me cortou o coração.

— Eu cometi erros. Fui fraco. Tive problemas com álcool… mas nunca deixei de vos amar. Tentei voltar tantas vezes… mas a tua mãe não me deixou aproximar-me de ti.

As lágrimas começaram a cair-me pelo rosto sem eu conseguir controlar. Lembrei-me de todas as noites em que desejei ter um pai, de todos os aniversários em que esperei por uma carta ou um telefonema.

Nesse momento ouvi a chave na porta. A minha mãe entrou na cozinha e parou ao ver-nos.

— O que é que estás aqui a fazer? — gritou ela para o meu pai.

— Teresa, por favor… — tentou ele explicar-se.

— Não tens nada para dizer! — cortou ela, furiosa. — Vai-te embora!

Levantei-me de rompante:

— Chega! Quero saber a verdade! Estou farta de mentiras!

O silêncio caiu como uma bomba. A minha mãe olhou para mim com lágrimas nos olhos.

— Fiz o que achei melhor para ti… Ele não era bom para nós…

— E não achaste que eu devia decidir isso? — perguntei, sentindo-me traída por ambos.

A discussão durou horas. Gritos, acusações antigas, mágoas nunca resolvidas. Descobri coisas sobre os dois que nunca quis saber: traições, dívidas escondidas, noites passadas fora de casa. A imagem perfeita da minha mãe desfez-se ali mesmo à minha frente.

No fim da noite, o meu pai levantou-se para sair.

— Eu só queria pedir desculpa… — disse ele, com voz embargada. — E dizer-te que sempre estive aqui, à espera de uma oportunidade para te ver.

Fiquei sozinha na cozinha depois disso. A minha mãe chorava no quarto dela. Senti-me vazia, como se tivesse perdido tudo aquilo em que acreditava.

Nos dias seguintes tentei falar com ambos. O meu pai ligava-me todos os dias, mas eu não sabia o que dizer-lhe. A minha mãe evitava-me ou chorava sempre que eu entrava na sala.

Os meses passaram assim: entre silêncios pesados e telefonemas cheios de hesitação. Comecei a encontrar-me com o meu pai aos poucos — cafés rápidos no centro de Almada, passeios à beira Tejo onde ele me contava histórias da infância dele em Setúbal e dos sonhos que teve antes de tudo correr mal.

A relação com a minha mãe nunca mais foi igual. Ela sentia-se traída por eu querer conhecer o meu pai; eu sentia-me traída por ela me ter mentido durante tantos anos.

Um dia perguntei-lhe:

— Porque é que nunca me contaste a verdade?

Ela olhou para mim com olhos cansados:

— Tinha medo de te perder… Medo que gostasses mais dele do que de mim…

Percebi então que todos tínhamos medo: medo da verdade, medo do abandono, medo de não sermos suficientes.

Hoje tenho 28 anos. O meu pai está sóbrio há cinco anos e reconstruímos uma relação feita de franqueza e perdão. Com a minha mãe as coisas são mais difíceis; há feridas que talvez nunca cicatrizem completamente.

Às vezes pergunto-me: quantas famílias vivem presas em segredos e medos como nós? Será possível perdoar tudo? Ou há coisas que ficam sempre por dizer?