Quando o telefone toca e dói: A história de uma mãe de Coimbra e a sua filha distante
— Mãe, preciso que me emprestes dinheiro outra vez. — A voz da Inês, do outro lado da linha, vinha apressada, quase impaciente. Não havia um “olá”, nem sequer um “como estás”. Só o pedido, seco, como se fosse uma obrigação minha.
Fechei os olhos por um segundo, sentindo o peito apertar. O António estava sentado à mesa da cozinha, a olhar para mim com aquele olhar cansado de quem já ouviu esta conversa demasiadas vezes. O relógio marcava quase onze da noite e eu sabia que, mais uma vez, não ia conseguir dormir.
— Inês, filha… — tentei manter a voz firme, mas saiu-me um fio trémulo — já falámos sobre isto. Não podes continuar a pedir-nos dinheiro sempre que as coisas correm mal.
Do outro lado, silêncio. Depois, um suspiro irritado.
— Vocês nunca percebem! Acham que é fácil viver sozinha em Lisboa? Acham que eu não faço tudo o que posso? — A voz dela subiu de tom e senti uma lágrima escorrer-me pela face.
António levantou-se e pousou a mão no meu ombro. Não disse nada. Já não diz. Há meses que as palavras entre nós são poucas, como se tivéssemos medo de acordar fantasmas antigos.
Lembro-me do dia em que a Inês saiu de casa. Tinha acabado o secundário em Coimbra com boas notas e queria estudar Belas-Artes em Lisboa. “É o meu sonho, mãe!”, disse-me, com aqueles olhos castanhos brilhantes de esperança. Eu e o António hesitámos — Lisboa era longe, cara, perigosa — mas acabámos por ceder. Sempre quisemos dar-lhe asas.
No início, as chamadas eram diárias. Contava-nos tudo: as aulas, os colegas, as noites mal dormidas a pintar até de madrugada. Depois vieram os silêncios. As respostas curtas às mensagens. As chamadas só quando precisava de alguma coisa.
— Mãe? Estás aí? — A voz dela trouxe-me de volta ao presente.
— Estou, filha. Mas tens de perceber que não podemos continuar assim. O teu pai está reformado, eu trabalho só meio-dia na biblioteca… — A minha voz falhou outra vez.
— Então pronto! Se não querem ajudar, digam logo! — E desligou.
Fiquei ali parada, com o telefone na mão, a ouvir o silêncio pesado da casa. O António sentou-se ao meu lado e puxou-me para junto dele.
— Ela vai perceber um dia, Bárbara — murmurou ele. Mas eu já não sabia se acreditava nisso.
Os dias seguintes passaram lentos. No trabalho, os livros pareciam pesar mais nas mãos. As colegas perguntavam por Inês e eu sorria, fingindo que estava tudo bem. À noite, eu e o António jantávamos em silêncio, cada um perdido nos seus pensamentos.
Uma semana depois, recebi uma mensagem: “Desculpa pelo outro dia. Preciso mesmo de falar contigo.” O coração bateu mais forte. Liguei-lhe imediatamente.
— Mãe… — a voz dela vinha baixa, quase infantil — perdi o estágio. O senhorio quer aumentar a renda. Não sei o que fazer.
Quis abraçá-la através do telefone. Quis dizer-lhe que tudo ia ficar bem. Mas também quis gritar: “Porque é que só me procuras quando precisas?” Em vez disso, respirei fundo.
— Vem passar uns dias connosco, filha. Descansas, pensas melhor nas coisas…
— Não posso! Tenho vergonha de aparecer aí assim… fracassada.
— Não és fracassada, Inês! Só estás cansada. Todos precisamos de ajuda às vezes.
Ela chorou do outro lado da linha. Eu chorei deste lado. O António entrou na sala e ficou ali parado, sem saber se devia intervir ou não.
— Mãe… eu sinto-me tão sozinha aqui — confessou ela.
— Então volta para casa por uns dias. Não é vergonha nenhuma precisar dos pais.
Ela prometeu pensar. Desliguei com o peito apertado e sentei-me no sofá ao lado do António.
— Achas que fizemos bem em deixá-la ir? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele demorou a responder.
— Não sei… Talvez devêssemos ter sido mais duros. Ou talvez devêssemos ter estado mais presentes. Mas ela precisava de tentar.
Os dias passaram e Inês não veio. Mandava mensagens curtas: “Estou bem”, “Ainda não decidi”. Eu tentava não sufocá-la com perguntas, mas cada silêncio dela era uma ferida aberta.
Uma noite, depois do jantar, o António olhou para mim com uma tristeza antiga nos olhos.
— Lembras-te quando ela era pequena? Como corria para ti sempre que caía?
Sorri através das lágrimas.
— Agora já não corre para mim… só me procura quando precisa de dinheiro.
Ele pegou na minha mão.
— Ela ainda é nossa filha. Só está perdida.
Na semana seguinte, recebi uma chamada inesperada da irmã do António, a tia Rosa.
— Bárbara! Sabes da Inês? Vi no Facebook dela umas mensagens estranhas…
O coração disparou. Fui ao perfil dela e vi frases soltas: “Cansada de tudo”, “Ninguém entende”. Liguei-lhe imediatamente mas não atendeu.
O António sugeriu irmos a Lisboa procurá-la. Passei a noite em claro a imaginar todos os cenários possíveis: Inês sozinha num quarto escuro; Inês perdida pelas ruas; Inês zangada connosco para sempre.
No dia seguinte, ela finalmente respondeu à mensagem: “Estou bem. Só preciso de tempo.” Respirei fundo mas não consegui acalmar-me.
O António tentou animar-me:
— Ela vai encontrar o caminho dela. Temos de confiar.
Mas confiar era difícil quando tudo dentro de mim gritava para ir buscá-la e trazê-la para casa à força.
No domingo seguinte, estávamos os dois sentados na sala quando ouvimos a chave na porta. O coração quase me saltou do peito quando vi a Inês entrar — magra demais, olheiras fundas, mas com aquele olhar castanho que sempre me desarma.
Corri para ela e abracei-a com força. Ela chorou no meu ombro como quando era criança.
— Desculpa mãe… Desculpa pai… Sinto tanto a vossa falta…
Sentámo-nos os três no sofá e ela contou-nos tudo: o estágio perdido por causa de um chefe abusivo; as noites sem dormir; os amigos que afinal não eram amigos; a vergonha de pedir ajuda outra vez.
O António ouviu em silêncio e depois disse:
— Filha, errar faz parte da vida. O importante é saberes que tens sempre onde voltar.
Passámos aquela noite juntos na sala — sem televisão, sem telemóveis — só nós os três a falar até de madrugada.
Nos dias seguintes, Inês foi recuperando aos poucos: dormiu muito, comeu melhor, riu-se connosco como há anos não fazia. Falámos sobre procurar ajuda profissional; sobre voltar a estudar ou procurar outro trabalho; sobre recomeçar sem pressa nem vergonha.
Quando chegou o dia dela voltar a Lisboa para resolver as coisas pendentes, abracei-a com força à porta:
— Lembra-te: não és menos por precisares de nós. Somos família — disse-lhe ao ouvido.
Ela sorriu entre lágrimas:
— Obrigada por nunca desistirem de mim.
Agora já não espero pelo telefone com medo ou ansiedade. Sei que as chamadas podem ser difíceis mas também podem ser pontes para recomeços. E pergunto-me: quantas mães vivem este silêncio doloroso sem saber se devem proteger ou deixar voar? Será que algum dia aprendemos mesmo a ser pais?