Quando a Música se Torna Silêncio: O Segredo da Minha Neta

— Leonor, já praticaste hoje? — A voz da minha filha, Inês, ecoou pela casa, carregada de uma expectativa que me apertava o peito. Eu estava sentada na sala, a tricotar, mas cada nota errada que saía do piano na divisão ao lado era como uma agulha espetada no meu coração.

Leonor, com apenas oito anos, olhou para mim antes de responder. Os olhos dela pediam socorro, mas Inês não via. — Já, mãe… — murmurou, quase inaudível.

— Não parece! — insistiu Inês, cruzando os braços. — O professor disse que tens de praticar mais. Não quero ouvir desculpas.

Fiquei ali, imóvel, sentindo o peso da tensão. O relógio marcava seis da tarde e o cheiro do jantar começava a invadir a casa. Mas ninguém parecia ter fome. O único som era o das teclas do piano, tocadas sem alma.

Lembro-me de quando Inês era pequena. Ela também teve aulas de piano, mas era diferente. Ela queria aprender, sonhava com palcos e aplausos. Agora, parecia querer viver esse sonho através da filha. Mas Leonor… Leonor era diferente. Ela gostava de desenhar, passava horas a criar mundos de cor em folhas soltas pela casa. O piano era um castigo para ela.

Numa noite fria de novembro, ouvi um soluço vindo do quarto de Leonor. Bati à porta suavemente.

— Posso entrar?

Ela assentiu, enxugando as lágrimas com as costas da mão.

— O que se passa, querida?

— Não quero mais tocar piano, avó… — confessou num sussurro. — Mas a mãe não me ouve.

Sentei-me ao lado dela e abracei-a. O cheiro do seu cabelo misturava-se com o perfume das folhas de papel onde desenhava princesas e dragões.

— Já tentaste falar com ela?

— Ela diz que é para o meu bem… Mas eu só quero desenhar.

Na manhã seguinte, tentei abordar Inês enquanto tomávamos café.

— Achas mesmo que a Leonor gosta das aulas de piano?

Ela olhou-me com desconfiança.

— Mãe, claro que gosta. Só está numa fase difícil. Todas as crianças passam por isso.

— Não sei… Vejo-a tão triste…

Inês suspirou, impaciente.

— A música é importante. Dá disciplina. E ela tem talento! O professor disse que ela tem mãos perfeitas para o piano.

— Mas e se ela não quiser? — arrisquei.

O olhar dela endureceu.

— Não vou desistir dela como tu desististe de mim quando quis largar o ballet.

Aquelas palavras ficaram a ecoar na minha cabeça durante dias. Será que eu tinha mesmo desistido dela? Ou será que só a deixei escolher?

O tempo foi passando e Leonor foi-se apagando. As notas do piano tornaram-se cada vez mais hesitantes, os desenhos cada vez mais raros. Uma tarde, encontrei um caderno escondido debaixo da cama dela. Folheei-o devagar: todas as páginas estavam riscadas com traços negros e palavras como “não quero”, “não gosto”, “porquê?”.

O meu coração partiu-se um pouco mais.

Decidi intervir. Esperei por um domingo à tarde, quando Inês estava mais relaxada. Sentei-me com ela na varanda e mostrei-lhe o caderno.

— Isto é o que a Leonor sente.

Ela folheou as páginas em silêncio. Vi-lhe os olhos encherem-se de lágrimas, mas rapidamente limpou-as.

— Ela vai agradecer-me um dia — murmurou teimosamente.

— Ou vai afastar-se de ti — respondi com tristeza.

Nesse dia houve uma discussão enorme. Inês acusou-me de me meter onde não era chamada, de não compreender o que é ser mãe nos dias de hoje. Eu só queria proteger a minha neta do mesmo vazio que vi crescer na minha filha quando ela percebeu que nunca seria pianista profissional.

As semanas seguintes foram um inferno. Leonor começou a ter pesadelos e a acordar a chorar. Inês tornou-se ainda mais rígida nas exigências. O pai de Leonor, Miguel, tentava apaziguar as coisas mas acabava sempre por ceder à vontade da mulher.

Uma noite ouvi Leonor gritar no sono: “Não quero tocar! Não quero tocar!” Corri ao quarto dela e encontrei-a encolhida num canto da cama.

— Avó… ajuda-me…

Abracei-a com força e prometi que ia fazer alguma coisa.

No dia seguinte fui buscar Leonor à escola sem avisar ninguém e levei-a ao parque. Sentámo-nos num banco e dei-lhe um bloco de folhas e lápis de cor.

— Desenha o que quiseres.

Ela sorriu pela primeira vez em meses e começou a desenhar uma menina a fugir de um piano gigante com dentes afiados.

— É assim que te sentes?

Ela assentiu.

Quando voltámos para casa, Inês estava furiosa.

— Como te atreves a levá-la sem me avisar? E se tivesse acontecido alguma coisa?

— Aconteceu sim: ela sorriu — respondi calmamente.

Inês ficou sem palavras por um momento. Depois gritou:

— Não percebes! Eu só quero o melhor para ela!

Leonor correu para o quarto e bateu com a porta. Miguel tentou acalmar Inês, mas ela estava inconsolável.

Naquela noite escrevi uma carta à minha filha:
“Querida Inês,
Sei que queres proteger a Leonor do mundo e dar-lhe todas as oportunidades que não tiveste. Mas às vezes amar é saber ouvir e deixar ir. Se continuares assim, vais perder a tua filha para sempre — não para o mundo, mas para dentro dela própria. Pensa nisso antes que seja tarde demais.”
Deixei a carta na mesa da cozinha e fui dormir com o coração apertado.
Na manhã seguinte encontrei Inês sentada à mesa, olhos vermelhos de tanto chorar.
— Mãe… — começou ela — E se eu estiver errada?
Sentei-me ao lado dela e segurei-lhe as mãos.
— Nunca é tarde para ouvir quem amamos.
Nesse dia Inês falou finalmente com Leonor. Choraram juntas durante muito tempo. No fim, Inês prometeu deixá-la escolher entre continuar ou não as aulas de piano.
Leonor largou o piano sem olhar para trás e voltou a encher a casa de desenhos coloridos e gargalhadas tímidas.
Hoje olho para elas e pergunto-me: quantas vezes confundimos os nossos sonhos com os dos nossos filhos? Quantas Leonores existem por aí caladas atrás de um piano ou de outra obrigação imposta? E vocês? Já ouviram verdadeiramente os vossos filhos ou netos?