Porque a minha filha não acredita em mim? A história de Maria e o recomeço depois dos cinquenta
— Mãe, não percebes? Ele só quer aproveitar-se de ti! — gritou a Inês, com os olhos vermelhos de raiva e lágrimas. O eco da sua voz ainda vibrava nas paredes da sala, misturando-se com o cheiro do café frio e do bolo que ninguém tocou.
Eu fiquei ali, sentada na ponta do sofá, as mãos trémulas no colo. O relógio da parede marcava quase meia-noite. O silêncio entre nós era tão pesado que quase me sufocava. Tentei respirar fundo, mas as palavras dela cortavam-me por dentro.
— Inês, filha… — comecei, mas ela interrompeu-me logo.
— Não me chames filha agora! Não depois disto! — atirou ela, levantando-se num salto. — Como é que consegues confiar nele depois de tudo o que passaste com o pai?
O nome do teu pai ainda me dói. António foi o meu primeiro amor, o homem com quem sonhei envelhecer. Mas os sonhos nem sempre resistem à vida real. Ele partiu há dez anos, deixando-me com dívidas, mágoas e uma filha adolescente para criar sozinha. Desde então, nunca mais me permiti amar ninguém. Até conhecer o Manuel.
Conheci o Manuel numa manhã chuvosa de novembro, na fila da farmácia. Ele deixou-me passar à frente e sorriu-me como se me conhecesse há anos. Conversámos sobre trivialidades: o tempo, as dores nas costas, os preços dos medicamentos. No fim, ele ofereceu-me boleia até casa. Recusei, claro. Mas naquela noite sonhei com aquele sorriso.
Durante meses, encontrámo-nos por acaso: no supermercado, no café da esquina, no mercado municipal. Manuel era viúvo, reformado das Finanças, gostava de jardinagem e tinha dois netos que adorava. Aos poucos, deixei-me envolver pela sua gentileza. Pela primeira vez em muitos anos, senti-me vista.
Mas a Inês nunca gostou dele. Desde o início que olhava para ele com desconfiança.
— Ele é demasiado simpático — dizia ela. — Ninguém é assim sem querer alguma coisa.
Tentei explicar-lhe que a vida não acaba aos cinquenta. Que também tenho direito a sentir borboletas no estômago. Mas ela só via perigos onde eu via esperança.
A discussão daquela noite foi a gota de água.
— O que é que tu sabes dele? — insistiu a Inês. — Já viste como ele fala sempre em dinheiro? Já reparaste que ele nunca fala da família dele?
Senti-me pequena perante a fúria dela. Lembrei-me de todas as noites em claro quando ela era bebé, das febres altas, dos medos partilhados. Sempre fui mãe antes de ser mulher. E agora ela exigia que continuasse a sê-lo — só mãe, nada mais.
— Inês… eu amo-te tanto — disse-lhe baixinho. — Mas também preciso de cuidar de mim.
Ela virou-me costas e saiu porta fora, batendo com força. Fiquei sozinha na sala escura, com o coração aos saltos e as mãos frias.
Na manhã seguinte, Manuel ligou-me.
— Maria? Está tudo bem? — perguntou ele, com aquela voz calma que me fazia sentir segura.
Hesitei antes de responder.
— Não sei… A Inês não aceita isto. Diz que tu… que tu só queres aproveitar-te de mim.
Do outro lado da linha, ouvi um suspiro pesado.
— Maria… eu nunca faria isso. Eu gosto mesmo de ti. Mas entendo a tua filha. Sei que é difícil confiar outra vez.
As palavras dele aqueceram-me o peito, mas também me trouxeram dúvidas antigas. E se a Inês tivesse razão? E se eu estivesse a ser ingénua?
Durante dias evitei falar com ambas as partes. No trabalho — sou administrativa numa escola primária — os colegas notaram o meu ar ausente.
— Está tudo bem em casa? — perguntou-me a Dona Teresa, a colega mais velha.
Quase chorei ali mesmo na sala dos professores.
— A minha filha acha que estou a cometer um erro…
Ela pousou a mão no meu ombro.
— Os filhos têm medo de nos perder para outra pessoa. Mas tu mereces ser feliz, Maria.
As palavras dela ficaram comigo durante dias. Mas a dúvida corroía-me por dentro.
Uma tarde, ao chegar a casa, encontrei a Inês sentada à mesa da cozinha. Tinha os olhos inchados e uma carta na mão.
— Mãe… desculpa — murmurou ela. — Eu só tenho medo de te ver sofrer outra vez.
Sentei-me ao lado dela e peguei-lhe na mão.
— Eu entendo, filha. Mas não posso viver sempre com medo do passado. Preciso de tentar outra vez…
Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.
— Prometes que vais ter cuidado?
Sorri-lhe e abracei-a com força.
— Prometo.
Os meses seguintes foram um exercício de equilíbrio: entre jantares desconfortáveis com Manuel e Inês a lançar olhares desconfiados; entre telefonemas da minha irmã Rosa a perguntar se eu tinha perdido o juízo; entre noites em claro a pensar se estava a fazer tudo mal.
Houve momentos em que quase desisti. Quando descobri que Manuel tinha escondido que tinha um filho afastado há anos por causa de uma herança mal resolvida, senti o chão fugir-me dos pés.
— Porque é que não me disseste? — perguntei-lhe num sábado à tarde no jardim dele.
Ele baixou os olhos.
— Tive vergonha… Não sou perfeito, Maria. Tenho muitos erros atrás de mim.
Fiquei ali parada, entre as roseiras e as hortênsias dele, sem saber se devia fugir ou ficar. Mas depois lembrei-me das minhas próprias falhas: das vezes em que gritei com a Inês sem razão; das mentiras pequenas para proteger quem amo; das escolhas erradas feitas por medo da solidão.
A vida não é feita de pessoas perfeitas. É feita de pessoas que tentam todos os dias fazer melhor.
Com o tempo, Inês começou a aceitar Manuel — devagarinho, sem pressas nem promessas. Houve jantares em silêncio constrangedor, mas também risos partilhados quando ele contou histórias dos tempos das Finanças ou quando ajudou a Inês a tratar do IRS pela primeira vez.
A minha irmã Rosa continuou cética:
— Olha que há muitos homens assim…
Mas eu aprendi a ouvir menos os outros e mais o meu coração.
Hoje olho para trás e vejo quanto cresci desde aquela noite em que quase perdi a minha filha por querer ser feliz outra vez. Sei que nunca vou deixar de ser mãe — mas também não quero deixar de ser mulher.
Às vezes pergunto-me: quantas mulheres como eu vivem presas ao medo do julgamento dos filhos ou da família? Quantas abdicam da própria felicidade para não desiludir ninguém?
E vocês? Já tiveram de escolher entre o vosso coração e as expectativas dos outros?