Perdida no Silêncio do Meu Casamento
— Mariana, vais mesmo sair assim? — perguntou Rui, sem levantar os olhos do telemóvel, enquanto eu ajustava o casaco à porta de casa.
O tom dele era seco, quase indiferente. Senti o peito apertar, como tantas outras vezes. Não respondi. Olhei para o espelho do corredor e vi uma mulher cansada, com olheiras profundas e um sorriso forçado. Era eu, mas já não me reconhecia.
A nossa casa estava mergulhada num silêncio pesado. O Rui, outrora apaixonado e divertido, tornara-se um homem calado, distante, sempre absorto no trabalho ou nos ecrãs. Eu tentava puxar conversa, sugerir programas a dois, mas as respostas dele eram cada vez mais curtas. Sentia-me invisível.
Lembro-me de quando nos conhecemos na faculdade, em Coimbra. Ele fazia-me rir até às lágrimas. Passávamos horas a conversar sobre tudo: política, sonhos, viagens. Jurámos nunca cair na rotina dos nossos pais. Mas a vida, traiçoeira, foi-nos empurrando para lá.
— Mariana, não te esqueças de comprar pão — disse ele, já sem paciência.
— Não sou tua empregada — respondi, num sussurro que ele fingiu não ouvir.
No trabalho, as coisas também não estavam fáceis. A minha chefe, Dona Teresa, era exigente e pouco compreensiva. Os colegas falavam pelas costas. Sentia-me sozinha em todo o lado. Às vezes, pensava em ligar à minha mãe, mas ela só sabia dizer: “Tens de ter paciência, filha. Os homens são assim mesmo.” Mas será que tinham de ser?
Numa noite fria de novembro, depois de mais uma discussão sem sentido sobre quem devia lavar a loiça, sentei-me na varanda com um copo de vinho barato. As luzes da cidade brilhavam ao longe. Senti uma lágrima escorrer pelo rosto. O Rui estava na sala a ver futebol, como sempre.
— Mariana, estás bem? — ouvi a voz da minha irmã ao telefone.
— Não sei — respondi. — Sinto-me perdida.
A Ana sempre foi o meu porto seguro. Ela sabia das minhas dores sem eu precisar de explicar muito.
— Tens de falar com ele — disse ela. — Não podes continuar assim.
Mas como falar com alguém que já não ouve?
Os dias foram passando. O Natal aproximava-se e eu tentava animar a casa com decorações e bolos. O Rui nem reparava. No jantar de família, a minha sogra comentou:
— A Mariana anda tão magra… O Rui não te dá de comer?
Todos riram menos eu. Senti-me exposta e humilhada. O Rui limitou-se a encolher os ombros.
Naquela noite, depois de todos irem embora, explodi:
— Porque é que nunca me defendes? Porque é que nunca dizes nada?
Ele olhou-me como se eu fosse uma estranha.
— Estás sempre a reclamar. Nunca estás satisfeita.
As palavras dele doeram mais do que qualquer silêncio. Fui dormir para o sofá.
Comecei a sair mais sozinha: caminhadas pela praia da Figueira da Foz ao fim de semana, cafés com a Ana ou com a minha amiga Sofia do trabalho. Aos poucos, fui sentindo um fio ténue de alegria voltar. Mas cada regresso a casa era um mergulho no vazio.
Um dia, encontrei uma carta antiga do Rui no fundo de uma gaveta. Era do nosso primeiro aniversário juntos:
“Mariana,
És o melhor que me aconteceu. Prometo nunca deixar de te ouvir e fazer-te sorrir todos os dias.”
Chorei como há muito não chorava. Onde tinha ido parar aquele homem? E onde estava aquela mulher cheia de sonhos?
Tentei conversar com ele mais uma vez.
— Rui, precisamos de falar.
Ele suspirou.
— Outra vez? O que é que queres agora?
— Quero saber se ainda gostas de mim. Se ainda somos um casal ou só dois estranhos a partilhar casa.
Ele ficou em silêncio durante tanto tempo que pensei que não ia responder.
— Não sei — disse finalmente. — Acho que já não sei sentir nada.
Foi como se me tivessem tirado o chão.
Nessa noite não dormi. Fiquei a olhar para o teto escuro do quarto, a ouvir a respiração pesada dele ao meu lado. Pensei em sair dali para sempre. Mas para onde iria? E se estivesse a cometer um erro?
No dia seguinte fui trabalhar com os olhos inchados. A Sofia percebeu logo.
— Mariana… se precisares de falar…
Desatei a chorar na copa do escritório. Ela abraçou-me sem dizer nada.
Comecei a procurar psicólogos na internet. Marquei uma consulta sem dizer nada ao Rui. Na primeira sessão, contei tudo à Dra. Helena: o silêncio em casa, as discussões vazias, o medo de estar sozinha mas também o medo de nunca mais ser feliz.
— Mariana, às vezes temos de nos perder para nos encontrarmos outra vez — disse ela.
As palavras dela ficaram comigo durante dias.
Comecei a escrever num diário todas as noites: medos, desejos, memórias felizes e tristes. Aos poucos fui percebendo que tinha deixado de viver para mim há muito tempo.
Um sábado à tarde, enquanto arrumava a casa, encontrei o Rui sentado no sofá a olhar para o vazio.
— O que é que vamos fazer? — perguntei-lhe.
Ele encolheu os ombros.
— Não sei se consigo mudar…
— E eu não consigo continuar assim — respondi.
Decidimos dar-nos algum tempo separados. Fui para casa da Ana durante umas semanas. Senti falta da rotina mas também um alívio imenso por poder respirar sem medo do silêncio.
Aos poucos fui recuperando partes de mim: voltei a pintar quadros como fazia antes de casar; inscrevi-me numa aula de ioga; comecei a rir outra vez com as amigas.
O Rui ligava-me às vezes:
— Precisas de alguma coisa?
— Preciso de mim — respondia eu.
Depois de dois meses separados encontrámo-nos num café perto do rio Mondego.
— Mariana… desculpa — disse ele baixinho. — Eu perdi-me também.
Olhei para ele e percebi que já não sentia raiva nem tristeza. Só uma enorme compaixão por nós dois.
— Talvez seja tarde demais — disse-lhe. — Mas desejo-te tudo de bom.
Voltámos cada um para o seu caminho. Não foi fácil recomeçar sozinha aos 38 anos numa cidade pequena onde toda a gente comenta tudo. Mas aprendi a gostar da minha própria companhia e a valorizar quem sou sem precisar da aprovação de ninguém.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas mulheres vivem presas no silêncio dos seus casamentos? Quantas têm coragem para se reencontrar? E vocês… já se sentiram perdidos dentro da vossa própria vida?