Pequenos-almoços com a Sogra: Quando a Ajuda se Torna um Peso
— Não percebo, Sofia, como é que deixas a casa neste estado. — A voz da minha sogra, Dona Lurdes, ecoa pela cozinha, misturando-se com o cheiro do café acabado de fazer. O relógio marca oito da manhã, mas sinto que já vivi um dia inteiro.
Respiro fundo, tentando não responder de imediato. O Miguel, meu marido, está a pôr manteiga nas torradas dos miúdos, fingindo não ouvir. A Maria, de seis anos, olha para mim com aqueles olhos grandes, esperando que eu sorria. Mas o sorriso não me sai.
— Dona Lurdes, ontem cheguei tarde do trabalho… — começo, mas ela interrompe.
— Trabalho, trabalho… Antigamente as mulheres trabalhavam em casa e ainda tinham tempo para tudo. Não sei onde isto vai parar.
Sinto o peito apertar. Não é a primeira vez que ouvimos esta conversa. Desde que o Miguel ficou desempregado e eu tive de aceitar mais turnos no hospital, a Dona Lurdes aparece cá em casa quase todos os dias. Diz que vem ajudar, mas às vezes sinto que só vem para me lembrar do que estou a falhar.
O Miguel levanta-se e vai buscar mais pão. A tensão entre nós é palpável. Ele não gosta de confrontos, prefere fugir ou calar-se. Eu já não sei se devo gritar ou chorar.
— Mãe, posso ir brincar? — pergunta a Maria, baixinho.
— Vai, filha — respondo, tentando soar calma.
A Dona Lurdes suspira alto.
— Não sei como é que esta geração vai educar os filhos. Antigamente não era assim.
Fico a olhar para as mãos, as unhas roídas até ao sabugo. Lembro-me da minha própria mãe, que morreu cedo demais para me ensinar a lidar com estas coisas. Sinto-me sozinha, mesmo rodeada de gente.
O pequeno-almoço termina em silêncio. O Miguel sai para procurar emprego — mais um dia sem respostas — e eu fico sozinha com a Dona Lurdes. Ela começa a arrumar a cozinha com movimentos bruscos.
— Sofia, tens de perceber que isto não é vida para ninguém. O Miguel está perdido e tu só pensas no teu trabalho.
— Eu penso em todos! — expludo, finalmente. — Se não fosse o meu trabalho, nem pão havia nesta mesa!
Ela pára e olha para mim como se eu tivesse dito uma blasfémia.
— Não me fales assim. Eu só quero ajudar.
— Às vezes a sua ajuda pesa mais do que alivia — digo, quase num sussurro.
Ela vira-me costas e sai da cozinha. Fico ali parada, sentindo-me culpada e aliviada ao mesmo tempo.
O dia passa devagar. No hospital, vejo pessoas a lutar por cada segundo de vida e penso nos meus próprios problemas. Às vezes invejo os meus doentes: pelo menos eles sabem o que é importante.
Quando chego a casa, encontro o Miguel sentado no sofá, olhar vazio na televisão desligada.
— Alguma novidade? — pergunto.
Ele abana a cabeça.
— A tua mãe ligou outra vez — diz ele. — Quer saber se precisamos de alguma coisa.
Suspiro. Sento-me ao lado dele e pego-lhe na mão.
— Estamos a perder-nos, Miguel. Entre o teu silêncio e as críticas da tua mãe… já não sei quem sou nesta casa.
Ele olha para mim com tristeza.
— Eu também não sei quem sou sem trabalho… Sinto-me inútil.
Abraçamo-nos em silêncio. A Maria espreita da porta do quarto e corre para nós. Abraçamo-nos os três, como se isso pudesse afastar tudo o resto.
No dia seguinte, a Dona Lurdes volta para o pequeno-almoço. Tento respirar fundo antes de abrir a porta.
— Bom dia — digo, forçando um sorriso.
Ela entra sem responder e vai direta à cozinha. Começa logo a arrumar as coisas à sua maneira. Sinto-me uma estranha na minha própria casa.
— Sofia, tens de ser mais paciente com o Miguel. Ele está a passar uma fase difícil — diz ela, sem me olhar nos olhos.
— Eu sei disso… Mas também preciso de espaço para respirar. Não posso ser tudo para todos — respondo, tentando controlar as lágrimas.
Ela pára por um momento e olha para mim com uma expressão menos dura.
— Quando o meu marido morreu, eu também tive de ser tudo para todos… Mas nunca deixei cair nada.
— E foi feliz assim? — pergunto, surpreendendo-me com a minha coragem.
Ela hesita antes de responder.
— Não sei… Acho que nunca pensei nisso.
O silêncio instala-se entre nós. Pela primeira vez vejo fragilidade nos olhos dela. Talvez sejamos mais parecidas do que quero admitir: duas mulheres presas entre o dever e o desejo de serem felizes.
Os dias passam e as rotinas repetem-se: pequenos-almoços tensos, silêncios pesados, olhares fugidios. Um sábado de manhã, decido sair sozinha para caminhar junto ao rio Tejo. Preciso de pensar longe das paredes da minha casa.
Vejo casais a passear de mãos dadas, crianças a correr atrás dos pombos. Pergunto-me quando foi a última vez que me senti leve assim. Sento-me num banco e deixo as lágrimas correrem livremente.
O telemóvel toca: é o Miguel.
— Onde estás? A tua mãe está preocupada — diz ele.
— Preciso de estar sozinha um pouco — respondo. — Diz à Dona Lurdes que volto já.
Quando chego a casa, encontro as duas sentadas à mesa da cozinha em silêncio. Sento-me também. Ninguém fala durante minutos intermináveis até que a Dona Lurdes quebra o gelo:
— Sofia… desculpa se às vezes sou dura contigo. Só quero o melhor para o meu filho e para os meus netos…
Olho para ela e vejo lágrimas nos olhos dela também.
— Eu sei… Mas preciso que confie em mim. Estou a dar o meu melhor — digo-lhe.
Ela estende-me a mão por cima da mesa e eu aceito-a. Pela primeira vez sinto que podemos encontrar um entendimento.
O Miguel entra na cozinha e sorri ao ver-nos assim. A Maria corre para junto de nós e pede panquecas para o lanche. Rimo-nos todos juntos pela primeira vez em muito tempo.
À noite, deitada na cama ao lado do Miguel, penso em tudo o que aconteceu nos últimos meses: as discussões, os silêncios, as lágrimas… Mas também este momento raro de paz.
Pergunto-me: quantas famílias vivem presas entre o dever e o desejo de serem felizes? Será possível encontrar equilíbrio sem perdermos quem somos pelo caminho?