Os Segredos de Inês: O Preço do Silêncio

— Inês, onde arranjaste esses ténis? — perguntei, tentando manter a voz firme enquanto ela pousava o telemóvel novo em cima da mesa.

Ela olhou-me de relance, os olhos castanhos semicerrados, como se já esperasse a pergunta. — Foi a mãe que me deu, pai. — respondeu, encolhendo os ombros.

O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada. A mãe da Inês, a Marta, tinha emigrado para França há dois anos. Falávamos pouco, e quando falávamos era sempre sobre assuntos práticos: horários, saúde, escola. Nunca sobre presentes caros. Nunca sobre ténis de marca ou gadgets de última geração.

Naquela noite, enquanto ela dormia no quarto ao lado, dei por mim a olhar para o teto, o coração apertado. Será que estava a falhar como pai? Será que ela sentia falta da mãe ao ponto de inventar presentes? Ou estaria a esconder-me algo mais grave?

No dia seguinte, tentei abordar o assunto com mais calma.

— Inês, sabes que podes falar comigo sobre tudo, não sabes?

Ela revirou os olhos. — Já disse que foi a mãe. Porque é que não acreditas em mim?

Aquela resposta doeu mais do que queria admitir. Senti-me velho, desatualizado, incapaz de acompanhar o mundo dela. Mas havia algo naquela história que não batia certo. Decidi seguir o meu instinto.

Na sexta-feira, disse-lhe que ia trabalhar até mais tarde. Esperei escondido no carro, do outro lado da rua. Vi-a sair de casa com a mochila às costas e um brilho estranho no olhar. Segui-a a pé, mantendo distância.

Ela entrou num café pequeno perto da escola secundária. Esperei alguns minutos antes de espreitar pela janela. Lá dentro, vi-a sentada com um homem de meia-idade. O coração disparou-me no peito.

Aproximei-me da porta, tentando ouvir sem ser visto.

— Não podes continuar a dar-me estas coisas — sussurrou ela, nervosa.

O homem sorriu-lhe com uma ternura desconcertante. — Não te preocupes, Inês. Só quero ajudar. O teu pai não precisa de saber.

Senti o sangue gelar-me nas veias. Quem era aquele homem? Um professor? Um amigo da família? Ou algo pior?

Esperei que ela saísse e segui-a até casa. O resto do dia passou-se num nevoeiro de ansiedade. Quando finalmente ela se fechou no quarto, bati à porta.

— Inês, precisamos de conversar.

Ela abriu a porta devagar, os olhos vermelhos.

— Pai…

— Quem é aquele homem?

Ela hesitou antes de responder. — É o tio Rui… irmão da mãe. Ele voltou há pouco tempo de Inglaterra. A mãe pediu-lhe para olhar por mim enquanto ela está fora.

Senti um misto de alívio e raiva. — E porque é que não me disseste nada?

Ela encolheu-se. — Achei que ias ficar zangado… ou triste… Sei lá! A mãe disse para não te contar.

Sentei-me na cama dela, sentindo o peso dos anos e das decisões mal tomadas.

— Inês, eu só quero proteger-te. Não podes esconder-me estas coisas.

Ela chorou baixinho e eu abracei-a como quando era pequena.

Naquela noite liguei à Marta.

— Porque é que pediste ao teu irmão para ver a Inês sem me dizeres nada?

Do outro lado ouvi um suspiro cansado.

— Miguel… achei que ias reagir mal. O Rui só queria ajudar…

— Não é isso! Eu só quero ser incluído nas decisões sobre a nossa filha!

A conversa terminou sem grandes conclusões. Mas dentro de mim crescia uma raiva antiga: aquela sensação de ser sempre o último a saber, o último a ser considerado.

Nos dias seguintes tentei aproximar-me mais da Inês. Levei-a ao cinema, fizemos jantar juntos. Mas havia sempre um muro invisível entre nós — feito de segredos e silêncios acumulados.

Uma tarde ouvi-a ao telefone com a mãe:

— Não quero mentir mais ao pai… Ele está triste…

Senti uma dor surda no peito. Afinal, todos estávamos magoados — cada um à sua maneira.

Na escola começaram a surgir boatos: diziam que a Inês tinha um “patrocinador”, alguém que lhe dava tudo sem pedir nada em troca. Os colegas olhavam-na com inveja ou desconfiança. Ela começou a chegar a casa mais calada, mais fechada em si mesma.

Uma noite rebentou:

— Odeio esta família! Odeio ter de escolher entre ti e a mãe! Odeio sentir-me diferente!

Gritou até ficar sem voz. Eu ouvi tudo em silêncio, sentindo-me impotente diante da dor dela.

No dia seguinte fui falar com o Rui.

— Não tens o direito de te intrometer assim na vida da minha filha.

Ele olhou-me nos olhos, calmo.

— Só tentei ajudar onde tu não chegavas, Miguel. Ela sente falta da mãe… e tu estás sempre tão ausente com o trabalho…

Aquelas palavras foram como facas. Era verdade: nos últimos meses tinha-me refugiado no trabalho para não enfrentar o vazio em casa.

Voltei para casa decidido a mudar as coisas.

Sentei-me com a Inês à mesa da cozinha.

— Filha… desculpa se tenho estado distante. Mas preciso que confies em mim. Não quero perder-te para os segredos ou para as mentiras.

Ela olhou para mim com lágrimas nos olhos.

— Eu só queria sentir-me normal… como as outras raparigas…

Abracei-a com força.

Aos poucos fomos reconstruindo a confiança. Falei com a Marta e combinámos regras claras: nada de presentes caros sem falar comigo primeiro; nada de segredos entre nós e a Inês; nada de muros invisíveis na nossa família partida.

Ainda hoje me pergunto: quantos pais conhecem verdadeiramente os filhos? Quantos segredos cabem entre quatro paredes? E será possível reconstruir uma família feita de pedaços?