Os Ecos da Inveja: Um Conto Português de Raiva e Provocação
— Catarina, não achas que já chega de te esconderes atrás desses relatórios? — A voz do Tiago ecoou pelo open space, cortando o silêncio tenso da manhã. Senti o sangue ferver-me nas veias. Olhei para ele, com aquele sorriso cínico que parecia sempre saber mais do que devia. Era o seu segundo mês na empresa, mas já se comportava como se fosse dono daquilo tudo.
A minha mão tremia sobre o rato do computador. Respirei fundo, tentando não responder à provocação. O escritório da consultora em Lisboa era um palco de egos, mas eu sempre me orgulhara de manter a compostura. Afinal, tinha subido a pulso, vindo de uma família humilde do Barreiro, e sabia o que era lutar por cada oportunidade.
Mas Tiago era diferente. Tinha estudado em colégios caros, falava inglês com sotaque perfeito e parecia ter sempre uma carta na manga. Desde que chegara, fazia questão de me desafiar em público, de expor as minhas falhas — reais ou imaginadas — perante toda a equipa. No início, tentei ignorar. Depois, tentei dialogar. Mas nada resultava.
Naquela manhã, depois da provocação, fechei os olhos por um segundo. Lembrei-me das palavras da minha mãe: “Catarina, nunca deixes ninguém pisar-te. Mas também não te percas na raiva.” Era fácil dizer. Difícil era pôr em prática.
No almoço desse dia, sentei-me sozinha no refeitório. Oiço risos ao fundo: Tiago rodeado de colegas, contando histórias de viagens e negócios em Londres. Senti-me pequena, invisível. Peguei no telemóvel e liguei à minha irmã, Inês.
— Preciso de falar contigo — disse-lhe, quase num sussurro.
— O que foi agora? — respondeu ela, sempre direta. — Ainda é aquele idiota do teu trabalho?
— Ele está a minar-me, Inês. Sinto que vou explodir.
— Catarina, tu és melhor do que isso. Não deixes que ele te tire do sério. Mostra-lhe quem manda.
Desliguei sem saber se me sentia mais forte ou mais sozinha. A verdade é que nunca fui boa a lidar com conflitos. Sempre preferi resolver tudo com trabalho duro e silêncio.
Mas naquela semana, tudo mudou. O Tiago apresentou um projeto à direção — um projeto que era meu. Tinha roubado as minhas ideias do servidor partilhado e apresentado como se fossem dele. Quando vi o PowerPoint na reunião, quase não consegui respirar.
— Catarina, tens algo a acrescentar? — perguntou o diretor-geral, olhando para mim com expectativa.
Olhei para Tiago. Ele sorriu-me, como quem diz: “Atreve-te”.
— Na verdade… — comecei, mas a voz falhou-me. Senti todos os olhos em mim. O coração batia tão forte que temi desmaiar ali mesmo.
No final da reunião, corri para a casa de banho e chorei como há anos não chorava. Lembrei-me do meu pai, operário fabril, que sempre dizia: “A vida é dura para quem é mole”. Mas eu sentia-me feita de vidro.
Nessa noite, em casa, o meu marido Miguel tentou animar-me.
— Catarina, tens de denunciar! Isso é plágio!
— E se ninguém acreditar em mim? Ele tem todos do lado dele…
— Não tens nada a perder. Ou lutas agora ou vais deixar que te destruam.
Passei a noite em claro. No dia seguinte, pedi uma reunião com a direção. Levei provas: emails trocados comigo mesma sobre o projeto, datas dos ficheiros originais no servidor. A diretora de recursos humanos ouviu-me com atenção.
— Catarina, isto é grave. Vamos investigar.
Durante duas semanas vivi num limbo: olhares de soslaio no corredor, sussurros atrás das portas fechadas. Tiago continuava impávido, como se nada fosse com ele.
Em casa, o ambiente também azedou. Miguel estava desempregado há meses e sentia-se inútil; eu trazia para casa toda a tensão do trabalho. Discutíamos por tudo e por nada: contas por pagar, tarefas domésticas esquecidas, sonhos adiados.
Uma noite, depois de uma discussão feia sobre dinheiro, sentei-me no chão da cozinha e chorei até não ter mais lágrimas. Senti-me esmagada pelo peso das expectativas — as minhas e as dos outros.
Finalmente chegou o dia da decisão. Fui chamada ao gabinete da direção.
— Catarina — disse a diretora — confirmámos que o projeto era teu. O Tiago vai ser dispensado imediatamente.
Senti um alívio imenso… mas também um vazio estranho. Quando voltei ao open space, todos me olhavam como se eu tivesse feito algo errado. Ninguém veio falar comigo nesse dia.
Na semana seguinte percebi que nada voltaria a ser como antes. Os colegas evitavam-me; alguns até murmuravam que eu tinha sido demasiado dura com o Tiago. Comecei a duvidar de mim mesma: teria exagerado? Teria deixado a raiva toldar-me o julgamento?
Em casa as coisas também não melhoraram. Miguel continuava distante; Inês dizia-me para sair daquela empresa tóxica; a minha mãe preocupava-se com a minha saúde mental.
Um sábado à tarde fui visitar o meu pai ao lar onde estava internado desde o AVC.
— Filha… — murmurou ele com dificuldade — não deixes que o trabalho te roube a alma.
Abracei-o com força e chorei baixinho no seu ombro magro.
Voltei para casa e olhei-me ao espelho: olhos inchados, cabelo desgrenhado, expressão cansada. Perguntei-me onde estava aquela Catarina cheia de sonhos e esperança.
Na segunda-feira pedi uma licença sem vencimento. Passei semanas a caminhar junto ao Tejo, a ouvir o som dos elétricos nas ruas estreitas da Alfama, a tentar reencontrar-me.
Um dia sentei-me numa esplanada e escrevi tudo o que tinha acontecido: as injustiças sofridas, os erros cometidos, as lições aprendidas. Percebi que tinha deixado a inveja e a raiva dos outros contaminarem o meu próprio coração.
Hoje voltei ao trabalho — noutra empresa, noutra área — mas nunca mais fui a mesma Catarina ingénua de antes. Aprendi que há batalhas que valem a pena… mas também há guerras interiores que ninguém vê.
Pergunto-me muitas vezes: quantas Catarinas existem por aí? Quantos de nós deixamos que a inveja alheia nos roube a paz? Será possível vencer sem perdermos quem somos?