O Solteiro de Lisboa: Entre o Medo e a Liberdade

— Então, Ricardo, vais passar mais um Natal sozinho? — A voz da minha mãe ecoou pela sala, carregada de uma mistura de preocupação e censura. O cheiro do bacalhau com natas pairava no ar, mas o apetite fugira-me há minutos.

— Mãe, já falámos sobre isto. Não é assim tão simples — respondi, tentando manter a calma enquanto o meu pai, sentado à cabeceira da mesa, desviava o olhar para a televisão, fingindo desinteresse.

— Não é simples? Aos 38 anos? — interrompeu a minha irmã mais nova, Sofia, com aquele sorriso meio trocista que sempre me irritou. — O Pedro já tem dois filhos e tu ainda nem namorada apresentaste.

Olhei para o prato. O silêncio pesou durante uns segundos, até que a minha mãe voltou à carga:

— O que é que te falta, filho? Tens trabalho, casa própria… Só falta mesmo uma mulher ao teu lado. Não queres ser feliz?

A palavra “feliz” ficou a martelar-me na cabeça. O que é ser feliz? Será que casar é mesmo sinónimo de felicidade? Ou será apenas mais uma expectativa que a sociedade portuguesa insiste em impor?

Saí para a varanda para respirar. Lisboa brilhava lá em baixo, as luzes dos carros misturavam-se com as estrelas. Lembrei-me da última vez que tentei um relacionamento sério. A Inês. Conhecemo-nos numa festa de amigos em comum, rimo-nos das mesmas piadas, partilhámos sonhos de viagens e até falámos em filhos. Mas bastaram três meses para percebermos que queríamos coisas diferentes. Ela queria estabilidade, eu queria liberdade. Ela queria planear o futuro, eu vivia no presente.

— Não entendo porque tens tanto medo de te comprometer — disse-me ela numa noite fria de janeiro, enrolada no meu sofá.

— Não é medo… — tentei explicar. — É só que… não quero perder quem sou.

Ela levantou-se, pegou no casaco e saiu sem olhar para trás. Fiquei ali sentado, a ouvir o eco da porta a fechar-se e a perguntar-me se estava mesmo condenado à solidão.

Os meses passaram. Os amigos começaram a afastar-se, ocupados com filhos e rotinas familiares. Os convites para jantares de casais rarearam. No trabalho, os colegas olhavam-me com aquele misto de inveja e pena: inveja pela liberdade, pena pela solidão.

Certa noite, o meu amigo João ligou-me:

— Ricardo, tens de vir ao jantar cá em casa. A Marta tem uma amiga nova, acho que vais gostar dela.

Aceitei por educação. Cheguei ao jantar e lá estava ela: Ana, olhos castanhos vivos e um sorriso tímido. Conversámos sobre tudo: política, música portuguesa, os melhores miradouros de Lisboa. Senti aquela faísca que há muito não sentia.

No final da noite, caminhámos juntos até ao metro.

— Gostei muito de te conhecer — disse ela.

— Também eu — respondi, sentindo um calor estranho no peito.

Trocámos números. Nos dias seguintes trocámos mensagens, marcámos cafés, passeios pelo Chiado e tardes na praia da Costa da Caparica. Mas à medida que a relação avançava, voltaram os velhos fantasmas: as perguntas sobre o futuro, os planos a dois, as expectativas de família.

Uma noite, depois de um jantar em minha casa, Ana olhou-me nos olhos:

— Ricardo… o que é que procuras realmente?

Fiquei sem resposta. O silêncio entre nós tornou-se insuportável.

— Não sei… — murmurei. — Às vezes sinto que não encaixo neste mundo de casais e famílias felizes do Instagram. Sinto-me bem sozinho… mas também tenho medo de acabar velho e arrependido.

Ela sorriu tristemente.

— Ninguém encaixa perfeitamente em lado nenhum. Mas fugir não resolve nada.

Ana foi-se afastando aos poucos. Voltou para o Porto, onde tinha família. Fiquei novamente sozinho no meu apartamento em Lisboa.

Os dias tornaram-se rotineiros: acordar cedo, café na pastelaria do bairro, trabalho até tarde, jantar solitário com séries na televisão. Aos domingos visitava os meus pais em Sintra. A pressão era sempre a mesma:

— Quando é que nos dás netos? — perguntava o meu pai entre duas garfadas de arroz de pato.

— Não sei se algum dia vou dar — respondia eu, tentando sorrir.

O olhar dececionado da minha mãe perseguia-me durante toda a semana.

No trabalho começaram os rumores:

— O Ricardo deve ser daqueles que nunca vai assentar — ouvi uma colega sussurrar à máquina do café.

Às vezes perguntava-me se estava mesmo errado. Se devia ceder à pressão e procurar alguém só para cumprir o guião social português: namoro sério, casamento na igreja da aldeia, filhos batizados ao domingo.

Mas depois lembrava-me das noites tranquilas na varanda do meu apartamento, do prazer de ler um livro sem interrupções, das viagens espontâneas ao Gerês ou ao Alentejo sem ter de dar satisfações a ninguém.

Uma tarde chuvosa de novembro recebi uma mensagem inesperada da Ana:

— Estou em Lisboa por uns dias. Queres tomar um café?

O coração bateu mais forte. Encontrámo-nos num café perto do Rossio. Ela parecia diferente: mais segura de si, mas com o mesmo brilho nos olhos.

— Como tens estado? — perguntei.

— Bem… E tu?

— Sobrevivendo — brinquei.

Rimo-nos. Falámos durante horas sobre tudo menos sobre nós. No final ela disse:

— Sabes… às vezes penso que somos todos vítimas das expectativas dos outros. Eu própria casei há seis meses…

O chão fugiu-me dos pés por um instante.

— Espero que sejas feliz — consegui dizer.

Ela sorriu com ternura:

— A felicidade é feita de escolhas… E cada escolha tem um preço.

Voltando para casa naquela noite chuvosa, pensei em tudo o que perdera e em tudo o que ganhara ao longo dos anos. A liberdade tem um preço alto: a solidão pesa nos dias frios e nas noites longas; mas também traz paz e autenticidade.

Hoje continuo solteiro em Lisboa. Os meus pais já desistiram de perguntar por namoradas ou netos. Os amigos habituaram-se à minha presença solitária nos jantares de grupo. Por vezes sinto falta de alguém ao meu lado; noutras vezes agradeço o silêncio e a autonomia.

Pergunto-me muitas vezes: será que fiz as escolhas certas? Ou será que deixei o medo decidir por mim? E vocês… já sentiram este dilema entre liberdade e compromisso?