O Silêncio de Vera: Por Que Ela Permanece Só aos 42 Anos
— Vera, já pensaste em casar? — A pergunta da minha mãe ecoou pela sala, cortando o silêncio como uma faca afiada. O cheiro do café acabado de fazer misturava-se ao aroma do bolo de laranja que ela insistia em preparar todos os domingos, como se o ritual pudesse colar os pedaços partidos da nossa família.
Olhei para ela, tentando não mostrar a irritação. — Mãe, já falámos sobre isso. Não é assim tão simples.
Ela suspirou, os olhos cansados de quem já viu demasiado. — Aos 42 anos, filha… As pessoas vão começar a falar. — A voz dela tremia, entre o medo do que os outros diriam e a esperança de que eu ainda pudesse ser “salva”.
O meu pai fingia ler o jornal, mas eu sabia que ouvia cada palavra. O silêncio dele era mais pesado do que qualquer discussão. Desde pequena que aprendi a decifrar os silêncios dos adultos — e a esconder os meus próprios segredos.
A verdade é que nunca fui boa a confiar. Nem nos outros, nem em mim. Cresci numa aldeia perto de Viseu, onde todos se conhecem e as histórias correm mais depressa do que o vento. A minha infância foi marcada por sorrisos forçados e olhares de soslaio. O meu irmão mais velho, Rui, era o orgulho da família — até ao dia em que desapareceu sem deixar rasto. Tinha 19 anos e eu 14. Nunca mais ouvimos falar dele.
A partir daí, a nossa casa tornou-se um lugar de fantasmas. A minha mãe chorava baixinho à noite, o meu pai fechou-se ainda mais no seu mundo de silêncios e eu… eu aprendi a sobreviver sozinha.
— Vera, tens de te abrir para a vida — dizia-me a minha melhor amiga, Mariana, sempre que me via recusar convites para sair ou conhecer alguém novo. — Não podes viver sempre com medo.
Mas como explicar-lhe que o medo era tudo o que conhecia? Que cada vez que alguém se aproximava demasiado, eu sentia o chão fugir-me dos pés? Que as perguntas sobre o Rui nunca respondidas me assombravam até hoje?
Foi numa dessas noites solitárias que conheci Miguel. Trabalhava comigo na biblioteca municipal. Tinha um sorriso tímido e olhos castanhos cheios de histórias. Começámos a conversar sobre livros, depois sobre música, depois sobre sonhos adiados. Pela primeira vez em anos, senti-me vista.
— Vera, gostava de te convidar para jantar — disse ele um dia, com as mãos a tremer.
Aceitei. O jantar foi simples: bacalhau à Brás e vinho verde. Rimos, partilhámos memórias de infância e até dançámos na sala dele ao som de António Variações. Quando me levou a casa, hesitou à porta.
— Posso voltar a ver-te?
Quis dizer-lhe que sim, mas as palavras ficaram presas na garganta. Sorri apenas e entrei em casa. Passei a noite acordada, a pensar no Rui, no medo de perder mais alguém.
Os dias passaram e Miguel insistiu. Mandava mensagens carinhosas, deixava bilhetes entre as páginas dos livros que eu catalogava. Mariana dizia-me para arriscar, mas eu sentia-me presa num ciclo sem fim.
Até ao dia em que recebi uma carta anónima na caixa do correio. “Sabes mesmo quem é o Miguel?” — dizia apenas isso. O papel tremia nas minhas mãos enquanto lia e relia aquelas palavras.
Confrontei Miguel no dia seguinte.
— Sabes alguma coisa sobre isto? — perguntei-lhe, mostrando-lhe a carta.
Ele ficou pálido. — Vera… há coisas do meu passado que não te contei. Mas não têm nada a ver contigo.
O medo apoderou-se de mim. Lembrei-me do Rui, das noites em claro à espera de notícias dele. Não consegui ouvir mais nada do que Miguel disse. Afastei-me dele sem explicações.
A minha mãe percebeu logo que algo estava errado.
— O que se passa contigo? — perguntou-me uma noite, enquanto lavávamos a loiça.
— Nada, mãe. Só estou cansada.
Ela pousou a mão na minha e olhou-me nos olhos.
— Não podes viver sempre com medo de perder as pessoas. Se não arriscares, nunca vais saber se podias ser feliz.
Chorei nessa noite como há muito não chorava. Senti-me ridícula por deixar o passado controlar o meu presente. Mas como confiar quando tudo à minha volta parecia desmoronar-se sempre que tentava ser feliz?
No trabalho começaram os boatos. Diziam que eu era fria, difícil de lidar, que devia ter algum segredo obscuro para ainda estar solteira aos 42 anos. Até Mariana começou a afastar-se, cansada das minhas recusas constantes para sair.
No Natal desse ano, sentei-me à mesa com os meus pais e senti o peso da ausência do Rui como nunca antes. O lugar dele continuava vazio, mas era como se todos estivéssemos ausentes uns dos outros.
Depois do jantar, fui até ao quarto dele. Abri a gaveta da secretária e encontrei um caderno antigo onde ele escrevia poemas. Li um deles em voz alta:
“Se um dia eu partir,
não chores por mim,
eu sou feito de vento
e voltarei no fim.”
Chorei até adormecer abraçada ao caderno.
Na manhã seguinte, tomei uma decisão: precisava de respostas sobre o Rui para poder seguir em frente com a minha vida.
Comecei a procurar pistas: falei com antigos amigos dele, procurei nos arquivos da polícia local, até contactei um jornalista de Viseu especializado em desaparecimentos antigos. Cada porta fechada era uma facada no peito, mas continuei.
Foi numa tarde chuvosa que recebi uma chamada inesperada.
— Vera? É o João Martins, amigo do teu irmão… Precisamos de falar.
Encontrámo-nos num café discreto no centro da cidade. João parecia envelhecido pelo tempo e pelo peso do segredo que carregava.
— O Rui não desapareceu por acaso — disse ele baixinho. — Ele meteu-se com gente perigosa… drogas… dívidas…
O chão fugiu-me dos pés. Sempre suspeitara de algo assim, mas ouvir aquelas palavras foi como reviver o luto todo outra vez.
Voltei para casa em silêncio. Sentei-me no sofá e olhei para as mãos vazias. Percebi então que tinha vivido toda a minha vida à espera de respostas que talvez nunca viessem completamente.
Na semana seguinte encontrei Miguel na biblioteca.
— Vera… desculpa tudo o que aconteceu — disse ele suavemente. — Eu também tenho fantasmas no passado, mas não quero fugir deles para sempre.
Olhei-o nos olhos e vi ali um reflexo da minha própria dor.
— Talvez possamos aprender juntos a viver com os nossos fantasmas — respondi finalmente.
Hoje escrevo esta história sem saber se algum dia serei capaz de amar sem medo ou confiar sem reservas. Mas sei que não estou sozinha na minha solidão — há muitos como eu por aí, presos entre o passado e o futuro incerto.
Pergunto-me: quantos de nós vivem assim? Quantos deixam de viver por medo de sofrer outra vez? E será possível recomeçar depois de tantas perdas?