O Sabor do Despertar: Entre Panelas e Silêncios
— Vais mesmo pôr mais sal? — perguntou o Miguel, com aquele tom que já não era só impaciência, era quase desprezo. As palavras dele cortaram-me mais do que a faca com que picava a cebola. O cheiro do bacalhau já enchia a cozinha, mas o ar estava pesado, quase irrespirável.
Respirei fundo, tentando não tremer. — Se não gostas, faz tu — respondi, mais seca do que queria. O Miguel olhou-me de lado, os olhos cansados de quem já não espera nada. O silêncio caiu entre nós como uma toalha molhada.
A Leonor, nossa filha de oito anos, desenhava na mesa da sala. O som dos lápis riscava o papel, inocente e distante da tempestade que se formava ali ao lado. Eu queria protegê-la, mas já não sabia como. A verdade é que há meses que eu e o Miguel éramos apenas dois estranhos a partilhar o mesmo teto.
O jantar foi servido sem cerimónia. Bacalhau à Brás, como tantas vezes antes. Mas aquela noite era diferente. Senti-o logo ao sentar-me à mesa. O Miguel mexia a comida no prato, sem apetite.
— O que foi agora? — perguntei, incapaz de esconder o cansaço.
Ele pousou o garfo devagar. — Achas mesmo que isto é vida? — murmurou.
Fiquei sem palavras. A Leonor olhou-nos, assustada. — Mãe?
— Está tudo bem, querida — menti, forçando um sorriso.
Mas não estava tudo bem. Não estava há muito tempo. O Miguel trabalhava horas a fio no escritório de advogados no Saldanha; eu dava aulas numa escola secundária em Chelas e trazia para casa as frustrações dos alunos e dos colegas. À noite, restavam-nos os restos do dia: silêncios, discussões sobre contas por pagar, ou sobre quem ia buscar a Leonor à escola.
Naquela noite, o Miguel levantou-se antes de acabar de comer. — Vou dar uma volta — disse apenas, pegando nas chaves do carro.
A porta bateu com força. Fiquei ali sentada, a olhar para o prato meio vazio. A Leonor aproximou-se devagar e abraçou-me pelas costas.
— Mãe, porque é que tu e o pai estão sempre tristes?
As lágrimas caíram-me sem aviso. Abracei-a com força, sentindo-me pequena e perdida.
Depois de a deitar, sentei-me na varanda a fumar um cigarro — hábito antigo que só voltava nos piores dias. Olhei para as luzes da cidade e pensei em tudo o que tinha mudado desde que conheci o Miguel na faculdade. Éramos inseparáveis, sonhávamos viajar pelo mundo, abrir um café em Alfama…
Agora éramos isto: dois adultos exaustos, presos numa rotina sufocante.
O Miguel voltou tarde. Entrou devagar, sentou-se ao meu lado na varanda sem dizer nada. Ficámos ali em silêncio durante minutos intermináveis.
— Não sei se consigo mais — disse ele finalmente.
Olhei-o nos olhos pela primeira vez em semanas. Vi ali o mesmo medo que sentia em mim: medo de desistir, medo de ficar.
— Eu também não — confessei.
A conversa que se seguiu foi dura. Vieram ao de cima mágoas antigas: as noites em claro quando a Leonor era bebé e ele não ajudava; as vezes em que eu me fechei no quarto a chorar sozinha; as traições pequenas — uma mensagem trocada com uma colega dele, um segredo meu guardado demais tempo.
— Porque é que nunca falámos disto antes? — perguntei-lhe.
Ele encolheu os ombros. — Porque dói demasiado.
Chorámos os dois naquela varanda fria de maio. Pela primeira vez em anos, senti-me próxima dele — não como mulher ou amante, mas como alguém que partilha a mesma dor.
No dia seguinte, acordámos diferentes. Não melhores, nem piores — apenas mais verdadeiros. Decidimos procurar ajuda: terapia de casal, conversas honestas à mesa do pequeno-almoço, passeios a três pelo Jardim da Estrela.
A mudança foi lenta e cheia de recaídas. Houve dias em que quis desistir; outros em que vi esperança nos olhos dele ou no sorriso da Leonor quando nos via de mãos dadas.
A cozinha tornou-se o nosso refúgio. Começámos a cozinhar juntos aos domingos: arroz de pato, sopa da pedra, pastéis de nata feitos à mão. Entre tachos e risos tímidos, fomos reconstruindo qualquer coisa parecida com amor — ou pelo menos respeito e amizade.
Nem tudo ficou resolvido. Ainda discutimos por coisas pequenas: quem se esqueceu de comprar pão, quem deixou a luz acesa na casa de banho. Mas aprendemos a falar antes que os silêncios se tornem muralhas.
Hoje olho para trás e percebo: mudar dói porque obriga-nos a olhar para aquilo que evitámos durante anos. Mas é nesse confronto — cru e difícil — que nasce qualquer coisa nova.
E vocês? Já tiveram coragem de enfrentar as vossas verdades à mesa da vossa própria vida? Ou continuam a temperar o silêncio com mais sal?