O Retorno de Mariana: Entre o Passado e o Perdão

— Rui, por favor, deixa-me explicar… — a voz de Mariana tremia, quase se desfazendo no ar frio daquela noite de novembro. Eu estava parado à porta da minha própria casa, as chaves ainda na mão, o coração a bater descompassado. O que fazia ela ali, depois de tudo? E aquela criança, de olhos grandes e assustados, agarrada ao seu casaco?

O silêncio entre nós era pesado. O passado parecia ter regressado com toda a força, esmagando-me o peito. Lembrei-me do dia em que Mariana saiu de casa, há quase três anos. Lembro-me do cheiro do café frio na mesa, das palavras duras trocadas na cozinha, das lágrimas que ela tentou esconder enquanto fechava a porta atrás de si. Nunca mais soube dela. Até hoje.

— Rui… — ela insistiu, agora com a voz embargada. — Eu não tinha para onde ir. Ele… ele deixou-nos. — Olhou para a criança, que devia ter uns dois anos, e depois para mim. — Por favor.

Senti uma raiva surda a crescer dentro de mim. Tantas noites sozinho, tantas perguntas sem resposta. E agora ela voltava, como se nada tivesse acontecido? Mas ao mesmo tempo, havia algo no olhar dela — um desespero genuíno, uma vulnerabilidade que me desarmou.

— Entra — disse finalmente, afastando-me para lhe dar passagem. Mariana entrou devagar, como se tivesse medo que o chão lhe fugisse dos pés. A criança olhava-me com curiosidade e medo.

Na sala, o silêncio era apenas interrompido pelo tique-taque do velho relógio da parede. Mariana sentou-se no sofá, puxando a menina para o colo.

— Como se chama? — perguntei, tentando manter a voz firme.

— É a Leonor — respondeu Mariana, acariciando-lhe o cabelo castanho-claro. — Minha filha.

Minha filha. As palavras ecoaram na minha cabeça como um trovão. Não era minha filha. Era filha de outro homem — do homem por quem Mariana me trocara.

— O que queres de mim, Mariana? — perguntei, sentindo a amargura na garganta.

Ela baixou os olhos.

— Só preciso de um lugar seguro para ficar… só por uns dias. Não tenho ninguém em Lisboa. Os meus pais não me falam desde que saí de casa contigo… e depois com ele…

A velha ferida voltou a abrir-se. Os pais dela nunca aceitaram o nosso casamento; depois do divórcio, cortaram relações com ela de vez. Eu sabia disso. Mas não era justo que agora ela viesse pedir-me abrigo.

— E o pai da Leonor? — perguntei, quase num sussurro.

Mariana mordeu o lábio inferior.

— Ele foi-se embora. Disse que não queria responsabilidades. Que eu era um erro na vida dele.

Olhei para Leonor. Ela brincava com um boneco velho que tinha trazido consigo. Tão pequena e já tão marcada pelo abandono.

Durante dias, Mariana e Leonor ficaram no quarto de hóspedes. Eu saía cedo para o trabalho e voltava tarde, tentando evitar cruzar-me com elas. Mas à noite ouvia os passos suaves de Mariana pela casa, os risos abafados de Leonor quando a mãe lhe contava histórias antes de dormir.

Uma noite, não resisti e bati à porta do quarto.

— Mariana… podemos falar?

Ela abriu a porta devagar, os olhos vermelhos de chorar.

— Desculpa por tudo — disse ela antes que eu pudesse dizer qualquer coisa. — Sei que te magoei muito. Sei que não mereço nada disto…

Sentei-me na beira da cama.

— Porque foste embora? Porque me trocaste por ele?

Ela respirou fundo.

— Senti-me sufocada aqui… queria mais da vida… achei que ele me podia dar isso. Mas enganei-me. Ele era violento, Rui. Controlador. Quando engravidei da Leonor, ele mudou ainda mais… comecei a ter medo dele.

Senti um nó no estômago. Nunca imaginei Mariana naquela situação.

— Porque não me disseste nada?

Ela encolheu os ombros.

— Vergonha… orgulho… achei que conseguia sozinha.

Ficámos em silêncio durante alguns minutos. Depois ouvi um sussurro:

— Achas que algum dia vais conseguir perdoar-me?

Não respondi naquela noite. Mas as palavras dela ficaram comigo.

Os dias passaram e comecei a ver Mariana com outros olhos. Ela esforçava-se para manter a casa arrumada, cozinhava para mim e para Leonor, tentava reconstruir uma rotina normal apesar da tensão entre nós. Leonor começou a chamar-me “tio Rui” e seguia-me pela casa como um patinho atrás da mãe.

Certa tarde, quando cheguei do trabalho mais cedo, encontrei Mariana na cozinha com Leonor ao colo. Estavam as duas a rir-se de qualquer coisa banal — farinha espalhada pelo balcão, ovos partidos no chão.

— Desculpa… — disse Mariana ao ver-me entrar, corando ligeiramente.

Sorri pela primeira vez em muito tempo.

— Não faz mal… até sabe bem ver vida nesta casa outra vez.

Aos poucos fui baixando as defesas. Comecei a levar Leonor ao parque aos fins-de-semana; Mariana vinha connosco e parecia feliz pela primeira vez em anos. Os vizinhos começaram a comentar — cochichos à porta do prédio, olhares atravessados no elevador.

Uma noite, recebi uma chamada inesperada da mãe de Mariana.

— Rui? Preciso falar contigo sobre a minha filha…

Hesitei antes de responder.

— Dona Teresa… não sei se sou a pessoa certa para isso…

— És sim! És o único que sempre quis o bem dela! — A voz dela tremia do outro lado da linha. — Diz-lhe que pode voltar para casa… se quiser…

No dia seguinte contei tudo a Mariana. Ela chorou nos meus braços durante minutos intermináveis.

— Não sei se consigo perdoá-los… mas obrigada por me ajudares a reencontrar-me com eles…

As semanas passaram e tudo parecia encaminhar-se para um final feliz improvável. Mas numa manhã fria de fevereiro tudo mudou.

Cheguei a casa e encontrei Mariana sentada à mesa da cozinha com uma carta nas mãos e uma expressão devastada no rosto.

— O pai da Leonor quer levá-la — disse ela num fio de voz. — Recebi esta carta do tribunal… ele quer a guarda partilhada…

O chão fugiu-me dos pés. Como podia aquele homem querer agora assumir responsabilidades? E como podia eu proteger aquela menina inocente?

Começaram as discussões entre advogados, as idas ao tribunal, as noites sem dormir. Mariana estava cada vez mais frágil; Leonor chorava todas as noites chamando pela mãe quando esta tinha de sair para reuniões com os advogados ou psicólogos do tribunal.

Uma noite encontrei Mariana sentada no chão do quarto de Leonor, abraçada à filha adormecida.

— Não aguento mais isto, Rui… — sussurrou ela entre lágrimas. — Sinto que estou a perder tudo outra vez…

Sentei-me ao lado dela e abracei-a como há muito não fazia.

— Não estás sozinha desta vez…

No final do processo judicial, o tribunal decidiu pela guarda partilhada: Leonor teria de passar metade do tempo com o pai biológico em Braga e metade connosco em Lisboa.

O dia em que vieram buscar Leonor foi o mais difícil das nossas vidas. Mariana caiu de joelhos no corredor assim que fecharam a porta atrás delas; eu fiquei parado à janela durante horas, incapaz de aceitar aquela injustiça.

Os meses seguintes foram um vazio difícil de preencher. Mariana tentou reaproximar-se dos pais mas as feridas eram profundas demais; eu tentei ser forte por ela mas sentia-me impotente perante tanta dor acumulada.

Um ano depois daquele reencontro inesperado à porta da minha casa, continuo sem saber se fizemos as escolhas certas ou apenas as possíveis diante das circunstâncias cruéis da vida.

Às vezes pergunto-me: será possível recomeçar quando o passado insiste em assombrar cada passo? Ou estamos todos condenados a repetir os mesmos erros até aprendermos finalmente a perdoar – aos outros e a nós próprios?