O Preço de Uma Maçã: Confissões de uma Avó Portuguesa Sobre Amor e Conflitos Familiares
— Maria, podes ir buscar as maçãs à mercearia? — perguntou a minha nora, Joana, sem sequer levantar os olhos do telemóvel. O tom dela era seco, quase automático, como se eu fosse invisível ou parte da mobília da casa. Senti o sangue ferver-me nas veias. Já era a terceira vez naquela semana que me pedia para sair à chuva para comprar qualquer coisa que ela própria podia ter comprado a caminho do trabalho.
Olhei pela janela. A chuva caía grossa, batendo nos vidros com força. Os meus joelhos doíam só de pensar em descer as escadas do prédio antigo onde vivíamos todos juntos desde que o meu filho, Rui, perdeu o emprego e tiveram de vender a casa. Eu sabia que não podia recusar. Se dissesse que não, Joana ficaria ofendida e Rui viria depois falar comigo, com aquele ar cansado de quem já não aguenta mais conflitos.
— Joana, está a chover tanto… Não podes esperar um bocadinho? — arrisquei, tentando manter a voz calma.
Ela suspirou, impaciente. — Preciso das maçãs para o lanche das crianças. Se não quiseres ir, eu vou, mas depois não digas que não ajudo em nada.
As palavras dela cortaram-me como uma faca. Senti-me pequena, inútil. Lembrei-me dos tempos em que era eu quem mandava na casa, quem decidia tudo. Agora era apenas a avó que ocupava espaço e dava trabalho.
Peguei no casaco e saí sem dizer mais nada. O vento gelado fustigou-me o rosto enquanto descia as escadas devagarinho, agarrada ao corrimão. Cada passo era uma luta contra a dor e contra a vontade de chorar. No caminho para a mercearia, recordei-me de quando Rui era pequeno e eu fazia tudo por ele — trabalhava horas extra na fábrica para lhe comprar os livros da escola, ficava acordada noites inteiras quando tinha febre. Agora mal me olhava nos olhos.
Na mercearia, o senhor António sorriu-me com pena. — Dona Maria, outra vez à chuva? — perguntou.
— A vida não espera pelo sol, António — respondi, forçando um sorriso.
Comprei as maçãs mais baratas. O dinheiro não dava para luxos desde que a reforma começou a encolher. No regresso a casa, as mãos tremiam-me tanto que quase deixei cair o saco.
Quando entrei na cozinha, Joana nem agradeceu. Pegou nas maçãs e começou logo a descascar uma para a Leonor, a minha neta mais velha.
— Avó, brincas comigo? — perguntou Leonor, com os olhos grandes e brilhantes.
Sorri-lhe, esquecendo por um momento as dores e as mágoas. — Claro que sim, meu amor.
Sentámo-nos no tapete da sala a construir castelos com blocos de madeira. Por instantes, senti-me útil outra vez. Mas Joana entrou na sala e olhou para mim com desdém.
— Não lhe dês ideias para fazer bagunça. Depois sou eu que tenho de arrumar tudo — disse ela.
Mordi o lábio para não responder. Não queria discutir à frente das crianças. Mas dentro de mim crescia uma raiva antiga, um nó no peito que me sufocava há anos.
À noite, depois de todos se recolherem aos quartos, sentei-me sozinha na cozinha escura. O relógio fazia tic-tac alto demais. Peguei numa chávena de chá frio e deixei as lágrimas correrem em silêncio.
Lembrei-me do meu marido, Manuel, falecido há dez anos. Ele dizia sempre: “Maria, nunca deixes ninguém pisar-te.” Mas como é que se faz isso quando se depende dos outros até para ter um tecto?
No dia seguinte, tentei falar com Rui enquanto ele tomava o pequeno-almoço.
— Rui… achas que estou a incomodar? — perguntei baixinho.
Ele olhou-me surpreendido. — O que é isso agora, mãe? Claro que não! A Joana é que anda stressada com o trabalho… Não ligues.
Mas eu ligava. Ligava a cada palavra atravessada, a cada olhar de desprezo. Sentia-me como uma sombra na minha própria casa.
As discussões tornaram-se mais frequentes. Joana implicava com tudo: o cheiro do meu guisado (“Demasiado alho!”), a forma como dobrava as toalhas (“Assim não!”), até com os desenhos animados que punha para os netos (“Isso é muito antigo!”).
Um dia ouvi-a ao telefone com a mãe dela:
— A tua sogra ainda está aí? Não sei quanto tempo mais aguento isto…
Senti-me esmagada por dentro. Pensei em sair de casa, procurar um lar de idosos. Mas depois olhava para Leonor e Tomás e o coração apertava-se-me ainda mais. Eles eram os únicos que me faziam sentir viva.
Certa tarde, Leonor caiu e magoou-se no joelho enquanto brincávamos no parque. Correu para mim aos gritos:
— Avó! Avó! Dói!
Peguei nela ao colo e beijei-lhe o joelho ferido. — Já passa, meu anjo…
Joana apareceu logo depois e olhou-me furiosa:
— Eu disse-te para teres cuidado! Não sabes olhar por ela?
Nesse momento perdi o controlo:
— Basta! Estou farta de ser tratada como um estorvo nesta casa!
O silêncio caiu pesado sobre nós. Rui entrou na sala ao ouvir os gritos.
— O que se passa aqui?
Joana cruzou os braços: — A tua mãe acha que manda em tudo!
Olhei para Rui à espera de apoio, mas ele desviou o olhar.
— Mãe… tenta perceber a Joana também…
Senti-me traída por todos. Saí porta fora sem destino certo. Andei pelas ruas molhadas até os pés me doerem. Sentei-me num banco do jardim e chorei como uma criança perdida.
Pensei em tudo o que tinha dado àquela família: anos de trabalho duro, noites sem dormir, sonhos adiados para dar aos outros uma vida melhor. E agora era isto? O preço de uma maçã era afinal muito mais alto do que eu imaginava.
Quando voltei a casa já era noite cerrada. Leonor esperava por mim à porta do quarto.
— Avó… desculpa…
Abracei-a com força. — Não tens culpa de nada, meu amor.
Nessa noite decidi escrever esta história porque sei que há muitas Marias por aí: mulheres silenciadas pelo peso das expectativas familiares, pelo medo da solidão e pela esperança teimosa de serem amadas.
Pergunto-me: quantas avós vivem assim? Quantas mulheres sacrificam tudo por uma família que nem sempre as vê? Será possível ser uma boa avó sem perder quem somos?