O Peso do Silêncio: A História de Inês e o Tempo que se Perdeu

— Inês, não podes continuar assim! — a voz da minha mãe ecoou pela cozinha, carregada de exaustão e impaciência. Eu estava sentada à mesa, os olhos fixos na chávena de chá frio, as mãos trémulas de raiva e tristeza. O relógio da parede marcava quase meia-noite, mas o tempo parecia ter parado naquele instante.

— Assim como, mãe? — respondi, tentando conter as lágrimas. — A fingir que está tudo bem quando ninguém aqui me vê? Quando tudo o que faço é ignorado?

Ela suspirou, encostando-se ao balcão. O cheiro do arroz doce ainda pairava no ar, mas já não havia doçura naquela casa. O meu pai estava na sala, a televisão ligada num volume absurdo para abafar as nossas vozes. O meu irmão, Tiago, tinha saído há horas e nem sequer avisara se vinha jantar.

— Inês, todos temos problemas. Não és a única — disse ela, mas eu já não ouvia. A minha cabeça fervilhava com memórias de anos a fio em que tentei agradar, ser a filha perfeita, a irmã compreensiva. Quantas vezes abdiquei dos meus sonhos para ajudar em casa? Quantas vezes ouvi “depois falamos”, “agora não posso”, “isso não é importante”?

Levantei-me de rompante, a cadeira arrastando-se no chão com um estrondo.

— Sabes o que dói mais? Não é o silêncio. É o tempo que perdi a tentar ser vista — atirei, sentindo finalmente as lágrimas escorrerem pelo rosto.

A minha mãe ficou calada. Pela primeira vez, pareceu realmente olhar para mim. Mas já era tarde demais.

Corri para o meu quarto e fechei a porta com força. O meu telemóvel vibrava com mensagens do Miguel, o rapaz com quem namorava há dois anos. “Desculpa, hoje não posso ir ter contigo. Estou cansado.” Mais uma vez. Mais uma desculpa. Mais uma noite sozinha.

Deitei-me na cama e abracei a almofada. Senti o peso de todas as horas gastas à espera de alguém: do Tiago, que nunca quis saber das minhas conquistas; do Miguel, que só me procurava quando lhe era conveniente; da minha mãe, sempre ocupada com os problemas dela; do meu pai, ausente mesmo quando presente.

Lembrei-me da infância: dos domingos no parque da cidade do Porto, das gargalhadas que pareciam eternas. Quando foi que tudo mudou? Quando foi que deixei de ser prioridade?

No dia seguinte acordei com os olhos inchados e a cabeça pesada. O pequeno-almoço já estava na mesa, mas ninguém me esperou. Sentei-me em silêncio enquanto o Tiago descia as escadas com pressa.

— Vais à faculdade hoje? — perguntou ele, sem me olhar nos olhos.

— Vou — respondi seca.

Ele hesitou por um segundo.

— Precisas de boleia?

Olhei para ele, surpresa. Era raro oferecer-se para algo sem pedir nada em troca.

— Não. Vou de metro — respondi.

Ele encolheu os ombros e saiu. A minha mãe entrou na cozinha logo depois.

— Inês… sobre ontem à noite…

Levantei a mão para a interromper.

— Não vale a pena, mãe. Já percebi tudo o que tinha de perceber.

Ela ficou ali parada, sem saber o que dizer. Peguei na mochila e saí de casa antes que as lágrimas voltassem.

No metro, olhei para os rostos cansados à minha volta. Todos pareciam carregar um fardo invisível. Perguntei-me quantos deles sentiam o mesmo vazio que eu.

Na faculdade tentei concentrar-me nas aulas de Psicologia, mas as palavras dos professores soavam distantes. Durante o intervalo sentei-me sozinha no jardim e vi o Miguel ao longe com os amigos dele. Ele viu-me mas desviou o olhar.

O meu coração apertou-se. Peguei no telemóvel e escrevi: “Precisamos falar.” Esperei minutos que pareceram horas até receber resposta: “Agora não posso.” Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.

Naquela noite decidi confrontá-lo. Esperei junto ao portão da casa dele até ele chegar.

— Inês? O que fazes aqui?

— Estou farta de esperar por ti, Miguel. Farta de esperar por todos! — gritei, sem me importar se alguém ouvia.

Ele olhou-me como se eu fosse um problema difícil de resolver.

— Estás a exagerar…

— Não estou! Só queria sentir que sou importante para alguém! Que o meu tempo vale alguma coisa!

Ele encolheu os ombros.

— Eu tenho a minha vida também…

Nesse momento percebi: nunca seria prioridade para ele. Nem para ninguém daquela casa onde cresci.

Voltei para casa a pé, sentindo cada passo como um adeus ao passado. Quando entrei, encontrei o meu pai sentado à mesa da cozinha, sozinho pela primeira vez em anos.

— Inês…

Sentei-me à frente dele sem dizer nada.

— Sabes… às vezes penso que falhei contigo — disse ele baixinho.

Olhei-o nos olhos e vi arrependimento genuíno.

— Não é tarde demais para mudar? — perguntei com voz trémula.

Ele pegou na minha mão pela primeira vez desde que me lembro.

— Só se tu quiseres tentar também…

Chorei ali mesmo, sem vergonha. Pela primeira vez senti esperança.

Nos dias seguintes comecei a mudar pequenas coisas: deixei de esperar respostas do Miguel e terminei com ele; comecei a sair sozinha para passear junto ao Douro; inscrevi-me num grupo de teatro da faculdade; aceitei boleias do Tiago quando ele oferecia; conversei mais com a minha mãe sobre coisas banais só para quebrar o gelo.

Aos poucos fui percebendo que o tempo não volta atrás, mas pode ser reconstruído se deixarmos cair as expectativas erradas e começarmos a valorizar quem realmente está disposto a estar presente — mesmo que seja só nós próprios por algum tempo.

Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas vezes nos perdemos à espera dos outros? E se começássemos a esperar por nós mesmos? Será que finalmente aprenderíamos a dar valor ao nosso próprio tempo?