O Noivo Perfeito da Minha Irmã: Entre Aparências e Desilusões
— Não percebes que ele não é quem diz ser, Sofia? — sussurrei, com a voz trémula, enquanto lavava a loiça, tentando abafar o som da minha revolta.
Sofia virou-se para mim, olhos faiscantes de raiva e mágoa. — Estás sempre a inventar problemas, Mariana. O Tiago é perfeito. Nunca vi ninguém tratar-me tão bem. Porque não consegues ficar feliz por mim?
Aquela frase ficou-me presa na garganta como um espinho. Desde que o Tiago entrou nas nossas vidas, há pouco mais de um ano, tudo mudou cá em casa. A nossa mãe, Dona Lurdes, parecia ter encontrado finalmente o genro dos sonhos: educado, trabalhador, sempre com um sorriso pronto e uma palavra simpática. O meu pai, António, também não poupava elogios. Só eu via as pequenas fissuras na máscara do Tiago.
No início, tentei ignorar. Talvez fosse ciúmes, pensei. Afinal, Sofia e eu sempre fomos muito próximas, quase gémeas apesar dos dois anos de diferença. Partilhávamos tudo: segredos, roupas, sonhos. Mas com o Tiago, ela começou a afastar-se. As conversas tornaram-se monossilábicas e os jantares em família rarearam. Mesmo vivendo todos sob o mesmo teto, era como se Sofia tivesse mudado de casa sem sair do quarto.
Uma noite, ouvi-os discutir baixinho no corredor. A voz do Tiago era fria, cortante:
— Já te disse para não falares da minha mãe à tua família. Não tens nada que misturar as coisas.
Sofia respondeu num tom submisso que nunca lhe conheci:
— Desculpa, Tiago. Não volta a acontecer.
O meu coração apertou-se. No dia seguinte, tentei falar com ela:
— Sofia, está tudo bem? Ouvi-vos ontem…
Ela cortou-me logo:
— Não te metas na minha vida, Mariana.
A partir daí, comecei a reparar em mais detalhes: o modo como ela evitava olhar-nos nos olhos; as mensagens que apagava rapidamente quando alguém se aproximava; as desculpas esfarrapadas para não sair connosco ao fim de semana. O Tiago parecia sempre perfeito — mas só quando havia testemunhas.
Certa tarde de domingo, enquanto os meus pais estavam na missa e Sofia tinha ido ao supermercado com o Tiago, decidi arrumar o quarto dela. Queria sentir-me próxima dela outra vez, nem que fosse através das pequenas coisas: um perfume esquecido na cómoda, um caderno de anotações. Foi aí que encontrei uma carta amarfanhada no fundo da gaveta:
“Sofia,
Não sei quanto mais consigo aguentar isto. Sinto-me sufocada e sozinha. O Tiago não é quem todos pensam. Tenho medo de falar e ninguém acreditar em mim. Se ao menos a Mariana percebesse…”
As mãos tremiam-me enquanto lia aquelas palavras. O choque deu lugar à raiva — raiva de mim própria por não ter insistido mais cedo, por ter deixado a minha irmã afundar-se sozinha.
Quando ela chegou a casa, confrontei-a:
— Li a tua carta. Sofia, tens de me contar tudo.
Ela chorou como nunca a vi chorar antes. Entre soluços, contou-me que o Tiago era controlador. Que lhe vasculhava o telemóvel, criticava as roupas que usava e fazia comentários cruéis sobre as amigas dela. Que já lhe tinha gritado e atirado um copo contra a parede durante uma discussão.
— Mas ele pede sempre desculpa depois… Diz que me ama e que só quer o melhor para mim — murmurou Sofia, encolhida no sofá.
O medo dela era palpável. E eu sabia que tinha de agir.
Naquela noite, esperei que os meus pais estivessem sentados à mesa para jantar e contei tudo. O silêncio foi ensurdecedor. A minha mãe levou as mãos à boca; o meu pai ficou lívido.
— Isso não pode ser verdade… O Tiago sempre foi tão educado — balbuciou Dona Lurdes.
— As aparências enganam — respondi eu, olhando para Sofia em busca de apoio.
Ela confirmou tudo com um aceno tímido.
O confronto com o Tiago foi inevitável. Quando chegou para jantar nessa noite, o meu pai recebeu-o à porta:
— Precisamos de conversar.
O Tiago tentou negar tudo ao início, mas perante as lágrimas da Sofia e a firmeza do meu pai, acabou por admitir parte do comportamento — minimizando sempre os seus atos.
— Eu amo a Sofia… Só quero protegê-la — justificou-se ele.
— Proteger não é controlar nem magoar — ripostei eu.
A decisão foi tomada naquela noite: o noivado estava terminado e o Tiago foi convidado a sair da nossa casa para sempre.
Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções: alívio misturado com tristeza; culpa por não ter feito nada mais cedo; medo pelo futuro da minha irmã. Sofia entrou numa espiral de tristeza profunda. Dormia pouco, chorava muito e recusava-se a sair do quarto.
Tentei estar sempre presente:
— Não tens de passar por isto sozinha — dizia-lhe todos os dias.
Aos poucos, com terapia e apoio familiar, ela começou a recuperar. Voltámos a rir juntas das pequenas coisas: das novelas da noite, das receitas falhadas ao jantar, dos vídeos parvos na internet.
Mas nada voltou a ser como antes. A confiança ficou abalada; as feridas demoraram a sarar.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas Sofias existem por aí? Quantas famílias se deixam enganar pelas aparências? E se eu tivesse ficado calada? Será que teria perdido a minha irmã para sempre?
Às vezes dou por mim a pensar alto:
— Será que aprendemos mesmo a ver para além das máscaras? Ou continuamos todos cegos pelo desejo de perfeição?