O Horário da Cozinha Que Virou Tempestade
— Não aguento mais, Maria. Juro-te, se ela me disser outra vez que é a minha vez de lavar o chão da cozinha, eu saio daquela casa! — Natália largou a chávena de chá na mesa com tanta força que o pires tilintou, ecoando pela minha sala como um pequeno trovão.
Olhei para ela, tentando decifrar se era raiva ou tristeza o que lhe brilhava nos olhos. Natália sempre foi uma mulher de fibra, dessas que não se deixam vergar facilmente, mas naquela noite parecia mais pequena, encolhida dentro do seu casaco de malha.
— Mas o que aconteceu agora, Natália? — perguntei, tentando manter a voz calma, apesar de sentir o peso da tensão no ar.
Ela respirou fundo, os dedos trémulos a brincar com o guardanapo.
— A Sílvia… Ela fez um horário para a cozinha. Diz que assim é mais justo, que cada um faz a sua parte. Mas tu conheces-me, Maria. Eu sempre tratei daquela casa como se fosse minha. Desde que o meu António morreu, fui eu que mantive tudo em ordem. Agora vêm dizer-me quando posso ou não posso cozinhar? Quando devo limpar?
O relógio da parede marcava quase dez da noite e a chuva batia nos vidros, tornando a sala ainda mais acolhedora. Mas dentro de Natália fervia uma tempestade.
— E o teu filho? O Miguel não diz nada? — perguntei, sabendo bem como estas coisas podem corroer uma família por dentro.
Ela abanou a cabeça, os olhos marejados.
— O Miguel… Ele só quer paz. Diz-me para não fazer caso, para aceitar. Mas como posso aceitar ser tratada como uma empregada na minha própria casa?
Fiquei em silêncio por uns instantes. Conhecia bem aquela sensação de invisibilidade, de ser posta de lado quando já se deu tudo por uma família. Lembrei-me dos meus próprios conflitos com a minha filha, Inês, quando ela trouxe o namorado para casa e de repente tudo tinha de ser diferente.
Natália continuou:
— Hoje foi a gota d’água. Cheguei à cozinha para preparar o jantar e a Sílvia estava lá, com aquele ar dela tão certinho, a apontar para o papel colado no frigorífico: “Hoje é o meu dia de cozinhar, Natália.” Como se eu fosse uma criança! — A voz dela falhou e vi-lhe as lágrimas finalmente caírem.
Levantei-me e abracei-a. Senti-lhe os ossos frágeis sob o casaco e pensei em quantas vezes ela já teria chorado sozinha naquele quarto onde agora dorme ao lado do neto pequeno.
— Já tentaste falar com ela? Explicar-lhe como te sentes?
Natália afastou-se ligeiramente e limpou as lágrimas com as costas da mão.
— Tentei. Mas ela só diz que é para o bem de todos. Que assim ninguém se sente sobrecarregado. Mas eu não me importo de fazer mais! Eu quero sentir-me útil… — A voz dela perdeu-se num sussurro.
Ficámos ali sentadas durante algum tempo, ouvindo apenas o som da chuva e dos nossos próprios pensamentos. Depois Natália endireitou-se e tentou sorrir.
— Desculpa estar aqui a despejar isto tudo em cima de ti, Maria. Mas já não sei o que fazer.
— Não tens de pedir desculpa — respondi. — Às vezes só precisamos mesmo de alguém que nos ouça.
Na manhã seguinte acordei com uma inquietação no peito. Não conseguia parar de pensar na Natália. Lembrei-me das vezes em que ela me trouxe sopa quente quando estive doente, das tardes em que ficámos à janela a ver os miúdos brincarem na rua. Decidi passar lá em casa dela para ver como estava.
Quando cheguei, ouvi vozes vindas da cozinha. A porta estava entreaberta e hesitei antes de bater.
— Não percebes, mãe? — Era a voz do Miguel, tensa. — A Sílvia só quer ajudar! Não podes continuar a fazer tudo sozinha!
— Eu não faço tudo sozinha! Só quero sentir que ainda pertenço aqui! — respondeu Natália, num tom desesperado.
Senti-me intrusa mas bati à porta mesmo assim. O Miguel abriu e ficou surpreendido ao ver-me.
— Bom dia, Maria… — disse ele, tentando sorrir.
— Bom dia… Desculpem interromper. Só vim saber se está tudo bem com a Natália.
Sílvia apareceu à porta da cozinha com um pano nas mãos e um sorriso forçado nos lábios.
— Está tudo bem, Maria. Só estamos a tentar organizar melhor as coisas cá em casa.
Olhei para Natália e vi-lhe os olhos vermelhos. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim.
— Às vezes organizar não é só fazer horários — disse eu, olhando diretamente para Sílvia. — Às vezes é preciso ouvir o coração dos outros também.
Houve um silêncio desconfortável. Miguel olhou para o chão e Sílvia mordeu o lábio inferior.
— Eu só queria ajudar… — murmurou ela finalmente.
Natália levantou-se devagar e pousou a mão no ombro da nora.
— Eu sei que queres ajudar, Sílvia. Mas custa-me sentir que já não confiam em mim para cuidar desta casa. Sempre fiz tudo com amor… Não quero ser um peso para ninguém.
Miguel aproximou-se da mãe e abraçou-a. Pela primeira vez naquela manhã vi um sorriso sincero no rosto dele.
— Ninguém te quer afastar, mãe. Só queremos que descanses um pouco também.
Sílvia suspirou e olhou para mim como quem procura aprovação.
— Talvez possamos rever o horário… Fazer juntos?
Natália assentiu devagar e eu senti um alívio profundo. Às vezes basta uma conversa honesta para desfazer mal-entendidos que parecem intransponíveis.
Naquela noite voltei para casa pensativa. Quantas famílias portuguesas não vivem estes pequenos dramas todos os dias? Quantas mães e avós sentem que estão a perder o seu lugar no mundo?
Agora, sentada à janela com uma chávena de chá nas mãos, pergunto-me: será que ouvimos realmente quem amamos? Ou deixamos que as rotinas e os horários nos afastem uns dos outros sem darmos conta?