O Homem Que Trocava de Meias Cinco Vezes ao Dia

— Outra vez, Sebastião? — perguntei, tentando controlar o tom da minha voz enquanto ele, meticulosamente, dobrava as meias usadas e tirava um novo par da gaveta. O relógio marcava nove da manhã e já era a segunda troca do dia.

Ele nem sequer olhou para mim. — Não consigo trabalhar com os pés húmidos, Nicole. Sabes disso.

Olhei para ele, para aquele homem que outrora me fazia rir até às lágrimas, agora tão distante, tão preso às suas rotinas. O som do elástico das meias novas a estalar nos tornozelos dele era quase uma afronta. Lembrei-me de quando nos conhecemos na festa de São João em Braga, ele com um sorriso tímido e um olhar que parecia prometer aventuras. Nunca imaginei que a maior aventura seria sobreviver ao desgaste dos dias.

A nossa casa, outrora cheia de conversas e música, agora ecoava silêncios pesados. O Sebastião era bancário, metódico até à medula. Eu, professora primária, sempre fui mais dada ao improviso. No início, as diferenças pareciam equilibrar-nos. Agora, eram muralhas.

— Não achas que estás a exagerar? — arrisquei, tentando soar compreensiva.

Ele suspirou, finalmente fitando-me. — Nicole, não percebes. Se não faço isto, sinto-me sujo. Não é só uma mania. É… é como se o mundo estivesse fora do lugar.

Apertei a chávena entre as mãos. — E eu? Eu também estou fora do lugar nesta casa.

Ele desviou o olhar, como se não soubesse responder. O silêncio caiu entre nós como uma cortina pesada.

À noite, depois de jantar — arroz de pato que ele mal tocou — tentei puxar conversa.

— Lembras-te de quando íamos à praia em Esposende e ficávamos até ao pôr-do-sol? Tu nem te importavas com a areia nos pés.

Ele sorriu de lado, mas logo se fechou de novo. — As coisas mudam, Nicole.

— Ou as pessoas mudam? — insisti.

Ele levantou-se abruptamente. — Não quero discutir.

Fiquei ali sentada, sozinha à mesa, a ouvir o som da máquina de lavar a trabalhar mais um ciclo só para as meias dele. Senti uma raiva surda crescer dentro de mim. Não era só pelas meias. Era por tudo o que tínhamos deixado de ser.

No domingo seguinte, fomos almoçar à casa dos meus pais em Guimarães. A minha mãe percebeu logo o clima tenso.

— Está tudo bem convosco? — perguntou ela baixinho enquanto eu ajudava a pôr a mesa.

— Ele… está diferente. Não sei se aguento mais isto, mãe. Parece que vivo com um estranho.

Ela pousou a mão no meu ombro. — O teu pai também tem as suas manias. Mas nunca deixei que elas fossem maiores do que nós.

Olhei para o Sebastião na sala, a trocar de meias pela terceira vez naquele dia, e pensei: “E se já não houver um ‘nós’?”

O jantar foi um desfile de trivialidades: futebol, política, o preço do azeite. Mas por baixo das palavras pairava a tensão. O meu irmão Miguel lançou-me um olhar cúmplice quando o Sebastião saiu para ir buscar mais meias ao carro.

— Ele está bem? — sussurrou Miguel.

— Não sei — respondi. — Às vezes acho que ele está preso dentro de si próprio e eu não consigo chegar lá.

Na viagem de regresso a casa, tentei mais uma vez.

— Sebastião, porque não procuras ajuda? Talvez um psicólogo…

Ele bufou. — Achas que sou maluco?

— Não é isso! Só acho que precisas de falar com alguém que não seja eu ou as tuas meias!

Ele ficou calado o resto da viagem. Quando chegámos a casa, foi direto para o quarto e fechou a porta.

Na escola, os meus colegas começaram a notar o meu cansaço. A Maria João ofereceu-me boleia para casa numa sexta-feira chuvosa.

— Nicole, tens de pensar em ti também. Não podes carregar o mundo às costas sozinha.

Chorei no carro dela pela primeira vez em meses. Senti-me aliviada e culpada ao mesmo tempo.

Nessa noite, sentei-me ao lado do Sebastião na cama.

— Eu amo-te, mas não consigo viver assim. Preciso que tentes mudar ou pelo menos entender o que está a acontecer contigo… connosco.

Ele olhou-me com olhos vermelhos de cansaço.

— Tenho medo, Nicole. Medo de perder o controlo. Medo de perder-te também.

Abracei-o como há muito não fazia. Chorámos juntos até adormecer.

Nos dias seguintes, ele aceitou procurar ajuda. As sessões com a Dra. Filipa foram difíceis no início; ele resistia, eu desesperava. Mas aos poucos começou a falar das pressões no banco, do medo do fracasso, da sensação constante de não ser suficiente nem para mim nem para ele próprio.

As trocas de meias diminuíram devagarinho. Houve recaídas — dias em que voltava ao velho padrão — mas também houve progressos: passeios sem sacos de meias extra, jantares em família sem fugas para o quarto.

A nossa relação não voltou a ser como antes; talvez nunca volte. Mas aprendemos a conversar sobre as nossas dores sem gritar ou fugir delas.

Hoje olho para o Sebastião enquanto ele calça as meias pela manhã e pergunto-me: quantas vezes trocamos nós próprios de pele só para sobreviver ao dia-a-dia? E será que algum dia conseguimos mesmo despir todas as nossas manias diante de quem amamos?