O Erro de Inês: Entre Palavras Duras e uma Partida Inesperada
— Inês, já te disse que não podes mexer nas coisas do Ricardo! — A voz da minha irmã, Mariana, ecoou pela cozinha como um trovão inesperado. Eu ainda segurava a chávena de café do meu cunhado, Ricardo, sem perceber que aquele simples gesto seria o estopim para tudo o que se seguiria.
O cheiro do café fresco misturava-se ao aroma de pão torrado, mas o ambiente estava longe de acolhedor. Mariana olhava para mim com os olhos semicerrados, a mão apoiada na bancada como se precisasse de se segurar para não explodir. Ricardo, sentado à mesa com o jornal aberto, fingia não ouvir, mas eu sabia que cada palavra era absorvida como veneno.
— Desculpa, Mariana. Eu não sabia que esta chávena era especial — tentei justificar-me, sentindo o rosto arder de vergonha. Tinha chegado àquela casa há menos de vinte e quatro horas, fugida de um apartamento vazio e de contas por pagar. A esperança era encontrar algum conforto junto da minha única família próxima. Mas ali, cada gesto parecia um erro.
Mariana suspirou alto, como quem carrega o peso do mundo. — Não é só a chávena, Inês. Há regras nesta casa. Não podes simplesmente fazer as coisas à tua maneira.
Ricardo pousou o jornal e olhou-me por cima dos óculos. — Mariana, deixa lá isso. Foi só uma chávena.
— Não é só isso! — Mariana elevou a voz, ignorando o marido. — Ela precisa de perceber que aqui não é a casa dela. Não estamos aqui para limpar os teus estragos.
Senti um nó na garganta. O silêncio que se seguiu foi mais pesado do que qualquer grito. Lembrei-me dos dias em que éramos apenas duas miúdas a correr pelo quintal dos nossos pais em Coimbra, sem preocupações nem mágoas. Agora, parecia que cada palavra era uma faca.
— Eu só queria ajudar — murmurei, quase inaudível.
Mariana virou-me as costas e começou a arrumar os pratos com força desnecessária. O tilintar da loiça era como um martelar constante na minha cabeça.
— Se queres ajudar, começa por respeitar as regras — disse ela, sem me olhar.
Ricardo levantou-se e saiu da cozinha, deixando-me sozinha com Mariana e o peso do meu erro. Sentei-me à mesa, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. O relógio na parede marcava oito da manhã. O dia mal tinha começado e eu já sentia vontade de desaparecer.
Ao longo das semanas seguintes, tentei adaptar-me às regras não escritas daquela casa: não usar as toalhas brancas do armário de cima; não mexer no frigorífico depois das dez da noite; não ligar a televisão antes das seis da tarde; não ocupar demasiado espaço na casa de banho. Cada pequena infração era recebida com olhares reprovadores ou comentários passivo-agressivos.
Uma noite, enquanto lavava a loiça do jantar, ouvi Mariana sussurrar para Ricardo na sala:
— Ela não vai sair daqui tão cedo? Isto está a tornar-se insuportável.
O meu coração apertou-se no peito. Lembrei-me do motivo que me levara ali: perdera o emprego há três meses, depois de a empresa onde trabalhava ter fechado portas sem aviso prévio. As entrevistas sucediam-se sem resposta positiva. O dinheiro acabara-se e os amigos afastaram-se aos poucos. Mariana era a minha última esperança.
No entanto, cada dia naquela casa era uma batalha silenciosa. Mariana parecia guardar rancores antigos, talvez inveja ou ressentimento por algo que eu nunca soube nomear. Ricardo tentava manter-se neutro, mas era evidente que preferia ter a casa só para eles.
Certa manhã, acordei com vozes alteradas vindas do corredor.
— Não aguento mais! Ela está sempre aqui, sempre no caminho! — gritava Mariana.
— Calma, Mariana. Ela precisa de ajuda — respondia Ricardo num tom cansado.
— E nós? Quem nos ajuda? Eu também estou cansada! — A voz dela falhou e percebi que chorava.
Levantei-me devagar e abri a porta do quarto. Mariana estava encostada à parede, os olhos vermelhos e as mãos trémulas. Ricardo olhou para mim com pena.
— Desculpa — murmurei, sentindo-me um fardo insuportável.
Mariana virou-se para mim com raiva contida:
— Não é tua culpa… mas também não é nossa obrigação resolver os teus problemas para sempre.
Fechei a porta devagar e sentei-me na cama. Olhei para as poucas roupas dobradas numa mala aberta no chão. Senti-me uma intrusa na vida deles, uma sombra indesejada.
Naquela tarde, decidi sair para procurar trabalho porta a porta. Entrei em cafés, lojas e até num pequeno supermercado do bairro. Em todos os lugares ouvi a mesma resposta: “Estamos completos” ou “Deixe o seu currículo”. Voltei para casa exausta e desanimada.
Quando entrei na cozinha, Mariana estava ao telefone com a nossa mãe:
— …não sei quanto mais tempo consigo aguentar isto… Sim, ela está aqui… Não sei…
Ela calou-se quando me viu e desligou rapidamente.
— A mãe está preocupada contigo — disse ela secamente.
— Eu também estou preocupada comigo — respondi num fio de voz.
O silêncio instalou-se entre nós como uma parede intransponível.
Nessa noite, enquanto tentava adormecer, ouvi passos no corredor e depois um leve bater à porta.
— Posso entrar? — era Ricardo.
Assenti com a cabeça e ele sentou-se na beira da cama.
— Sei que isto não está fácil para ninguém… Mas talvez fosse melhor procurares outro sítio para ficar — disse ele baixinho, evitando o meu olhar.
Senti as lágrimas escorrerem pelo rosto sem conseguir responder. Sabia que ele tinha razão. Mas para onde iria?
Na manhã seguinte, arrumei as minhas coisas em silêncio. Mariana evitou cruzar-se comigo. Ricardo desejou-me boa sorte sem convicção.
Saí daquela casa com a mala numa mão e o coração despedaçado na outra. O céu estava cinzento e ameaçava chover. Sentei-me num banco do jardim em frente ao prédio e chorei como há muito tempo não chorava.
Peguei no telemóvel e liguei à minha mãe:
— Mãe… posso ir para aí uns dias?
Do outro lado ouvi apenas um suspiro aliviado: — Claro que sim, filha…
Enquanto esperava pelo autocarro para Viseu, pensei em tudo o que perdera: o emprego, a independência, a relação com Mariana… Perguntei-me se algum dia conseguiríamos voltar a ser irmãs como antes ou se aquele erro inocente tinha sido apenas o pretexto para revelar feridas antigas nunca saradas.
Agora pergunto-me: quantas vezes um pequeno erro serve de desculpa para libertar tudo aquilo que guardamos cá dentro? Será que alguma vez conseguimos perdoar verdadeiramente quem amamos?