O Eco Silencioso do Nosso Aniversário: Quando os Nossos Filhos Escolheram o Silêncio em Vez da Celebração
— Sofia, filha, vais conseguir vir jantar connosco hoje? — perguntei, tentando disfarçar a ansiedade na voz enquanto segurava o telemóvel com força. O silêncio do outro lado era ensurdecedor. O relógio da cozinha marcava 18h12 e o cheiro do bacalhau no forno começava a invadir a casa, misturando-se com a minha inquietação.
— Mãe, hoje não posso mesmo. Tenho de terminar um relatório para amanhã e depois ainda vou jantar com o Rui. Desculpa — respondeu ela, apressada, como quem quer despachar uma chamada incómoda.
— Mas… é o nosso aniversário de casamento. Trinta anos, Sofia. Só queríamos jantar todos juntos…
— Eu sei, mãe. Parabéns aos dois. Depois ligo-vos, está bem? — desligou antes que eu pudesse insistir.
Fiquei ali parada, com o telemóvel na mão, a olhar para a porta da cozinha como se esperasse que ela se abrisse sozinha e a minha filha entrasse, sorridente, com um ramo de flores ou um simples abraço. Mas nada aconteceu. O Manuel entrou na cozinha nesse momento, ajeitando os óculos no nariz.
— E então? Ela vem? — perguntou ele, tentando soar despreocupado.
Abanei a cabeça devagar.
— Não pode. Tem trabalho… e outros planos.
O Manuel suspirou fundo e sentou-se à mesa, passando as mãos pelo cabelo grisalho. O silêncio entre nós era pesado, como se cada palavra não dita se acumulasse no ar. Faltava ainda ligar ao Tiago, mas já sabia o que esperar. Desde que foi trabalhar para Lisboa, as visitas tornaram-se cada vez mais raras. Peguei no telefone e marquei o número dele.
— Mãe? Está tudo bem? — atendeu ele, com aquela voz apressada de quem está sempre a correr atrás do tempo.
— Tiago… hoje é um dia especial para nós. Achas que consegues vir jantar? Ou pelo menos passar cá em casa um bocadinho?
— Hoje não dá mesmo, mãe. Estou cheio de trabalho e ainda tenho uma reunião ao final do dia. Mas parabéns aos dois! Depois passo aí no fim de semana, pode ser?
— Claro… — respondi, sentindo um nó apertar-se-me na garganta.
Desliguei o telefone devagar e sentei-me à mesa ao lado do Manuel. Olhámos um para o outro em silêncio. O bacalhau estava pronto, mas ninguém tinha fome.
— Lembras-te de quando eles eram pequenos? — perguntou ele, com um sorriso triste. — Fazíamos sempre questão de jantar todos juntos ao domingo. A Sofia adorava ajudar-te na cozinha e o Tiago não largava o comando da televisão…
Sorri, mas os olhos encheram-se-me de lágrimas. — Agora parece que somos só nós dois outra vez. Como se tudo aquilo tivesse sido apenas um sonho.
O Manuel pegou na minha mão por cima da mesa. — Fizemos o melhor que sabíamos, Maria. Demos-lhes tudo o que podíamos…
— Mas será que demos mesmo? Ou será que nos perdemos pelo caminho? — perguntei, mais para mim do que para ele.
O jantar decorreu num silêncio pesado. Cada garfada parecia um esforço hercúleo. Ouvia-se apenas o tique-taque do relógio da sala e os carros a passar lá fora. Depois do jantar, sentei-me no sofá com uma chávena de chá quente entre as mãos. O Manuel foi buscar o álbum de fotografias antigas e sentou-se ao meu lado.
Folheámos juntos as páginas amareladas pelo tempo: aniversários cheios de balões e gargalhadas, férias na praia com castelos de areia e sorrisos genuínos, Natais em família à volta da lareira. Cada fotografia era uma recordação feliz, mas também uma ferida aberta.
— Achas que falhámos como pais? — perguntei-lhe em voz baixa.
Ele demorou a responder. — Não sei… Talvez tenhamos sido demasiado exigentes às vezes. Ou talvez lhes tenhamos dado demasiada liberdade noutras alturas. É difícil saber onde errámos.
Lembrei-me das discussões acesas com a Sofia quando ela decidiu trocar o curso de Direito por Belas-Artes. Do silêncio magoado do Tiago quando lhe dissemos que não podíamos ajudá-lo financeiramente com a casa em Lisboa porque estávamos a pagar o empréstimo do nosso próprio apartamento. Das vezes em que preferimos trabalhar horas extra para lhes dar tudo aquilo que nunca tivemos, esquecendo-nos de lhes dar aquilo que mais precisavam: tempo.
O telefone tocou subitamente, interrompendo os meus pensamentos. Era uma mensagem da Sofia: “Desculpa outra vez, mãe. Espero que tenham tido um bom dia. Amo-vos.” Li a mensagem em voz alta para o Manuel e senti as lágrimas escorrerem-me pelo rosto.
— Eles amam-nos à sua maneira — disse ele, tentando consolar-me.
Mas será suficiente? Será este amor distante e apressado tudo o que nos resta?
Naquela noite, depois de arrumar a cozinha e apagar as luzes da sala, fiquei sentada à janela a olhar para as luzes da cidade ao longe. Lembrei-me dos meus próprios pais e de como me afastei deles quando comecei a trabalhar e a construir a minha família. Será este afastamento inevitável? Uma espécie de ciclo que se repete geração após geração?
No fim de semana seguinte, o Tiago apareceu finalmente em casa. Trouxe uma garrafa de vinho e um bolo comprado à pressa na pastelaria da esquina.
— Desculpem não ter vindo antes — disse ele, abraçando-me rapidamente antes de pousar as coisas na cozinha.
O Manuel sorriu-lhe e tentou animar o ambiente com piadas sobre o vinho barato e o bolo “industrializado”.
Sentámo-nos à mesa os três, mas havia uma distância invisível entre nós. As conversas giravam em torno do trabalho do Tiago, das notícias do país, das contas para pagar. Nada sobre sentimentos ou memórias partilhadas.
— E a Sofia? — perguntei eu.
— Está bem… anda muito ocupada com as exposições dela — respondeu ele evasivamente.
Depois do almoço, enquanto arrumava a loiça na cozinha, ouvi o Tiago falar baixinho ao telefone:
— Sim, mãe está bem… Está só um bocadinho em baixo por causa do aniversário… Sim, eu sei… Também tenho saudades tuas…
Senti uma pontada no peito ao perceber que até entre eles havia silêncios difíceis de preencher.
Quando finalmente fiquei sozinha na sala, olhei para as fotografias nas prateleiras: retratos de família tirados em dias felizes, agora cobertos por uma fina camada de pó.
Pergunto-me onde foi parar aquela família barulhenta e unida que éramos antes. Será que ainda há tempo para recuperar os laços perdidos? Ou será que estamos condenados a viver rodeados de silêncios e ausências?
Às vezes dou por mim a desejar voltar atrás no tempo só para poder abraçá-los mais uma vez quando eram pequenos e tudo parecia mais simples.
E vocês? Também sentem este eco silencioso nas vossas famílias? Será possível quebrar este ciclo ou estamos todos presos nesta dança de afastamentos e reencontros adiados?