O Dia em que Pedi à Minha Avó para Passar a Casa para o Meu Nome

— Avó, preciso de te pedir uma coisa — disse eu, com a voz a tremer, enquanto mexia nervosamente na chávena de chá que ela me tinha acabado de servir. O cheiro do bolo de laranja ainda pairava no ar da cozinha, misturado com o aroma doce do seu perfume antigo. Ela olhou-me por cima dos óculos, olhos azuis já cansados mas ainda atentos, e pousou a mão enrugada sobre a mesa.

— O que foi, Sara? Estás com esse ar desde que entraste. — O tom dela era calmo, mas conhecia-me demasiado bem para não perceber que algo me inquietava.

Respirei fundo. O pedido pesava-me no peito há semanas. Desde que o meu pai morreu e a minha mãe se afastou, era a avó Maria quem me segurava. Fui criada naquela casa de paredes grossas e azulejos antigos, onde aprendi a fazer arroz de pato e a decorar poemas do Fernando Pessoa. Mas agora, com o meu namorado a pressionar-me para pensarmos no futuro e os meus tios cada vez mais distantes, sentia-me encurralada.

— Avó… Eu queria saber se podias passar a casa para o meu nome. Não é por mal… — As palavras saíram-me num sussurro, quase engolidas pelo medo da resposta.

O silêncio caiu como uma pedra. Ela tirou os óculos devagar e pousou-os ao lado do prato de fatias douradas.

— E porquê agora? — perguntou, sem levantar a voz, mas com uma firmeza que me gelou.

— Eu… Tenho medo que os tios tentem vender isto quando tu já cá não estiveres. E sabes que esta casa é tudo para mim. Não quero perder as memórias… — A minha voz falhava, entrecortada por lágrimas que forcei a não cair.

Ela ficou a olhar para mim longamente, como se me visse pela primeira vez. O relógio da parede marcava cada segundo com um tique-taque irritante. Finalmente, falou:

— Sara, lembras-te quando eras pequena e fugias para o sótão sempre que estavas triste? Eu subia lá acima e ficávamos as duas sentadas no chão, a ouvir a chuva bater no telhado. Nunca te perguntei o motivo das tuas tristezas. Achava que bastava estar contigo. — Fez uma pausa, respirando fundo. — Agora percebo que talvez tenha errado.

Senti um nó na garganta. Queria dizer-lhe que não era isso, que ela tinha sido tudo para mim. Mas ela continuou:

— Esta casa não é só tua. Foi do teu avô, foi minha, foi dos teus tios… E eu sei que tens sido tu a cuidar de mim. Sei o quanto fizeste por esta família. Mas pedir-me isto… — A voz dela tremeu pela primeira vez. — Parece que estás à espera que eu morra.

— Não! — gritei, sem conseguir controlar as lágrimas. — Não é isso! Eu só quero proteger aquilo que é nosso! Os tios nunca ligaram a nada disto! Só vêm cá no Natal e mesmo assim mal falam contigo!

Ela levantou-se devagar e foi até à janela. Lá fora, o jardim onde eu brincava em criança estava coberto de folhas secas. Lembrei-me das tardes em que ela me ensinava a plantar roseiras e das noites em que me contava histórias de quando era jovem em Lisboa.

— Sabes, Sara… Quando perdi o teu avô, achei que nunca mais ia conseguir sorrir nesta casa. Mas tu trouxeste-me alegria outra vez. Não quero que penses que não confio em ti. Só tenho medo de te magoar… ou de magoar os teus tios.

Fiquei ali sentada, sem saber o que dizer. O peso da culpa misturava-se com a raiva pelos meus tios ausentes e com o medo de perder tudo aquilo que amava.

Naquela noite, não consegui dormir. Oiço ainda as palavras da avó ecoarem na minha cabeça: “Parece que estás à espera que eu morra.” Senti-me horrível por ter dado essa impressão. No dia seguinte, tentei falar com os meus tios — o António e a Teresa — mas ambos rejeitaram qualquer conversa sobre heranças ou casas.

— A mãe ainda está viva! — gritou o António ao telefone. — Que raio de conversa é essa agora?

A Teresa limitou-se a dizer:

— Se queres tanto a casa, fala com ela. Eu não quero saber disso para nada.

Senti-me sozinha como nunca antes. O meu namorado, Miguel, tentava animar-me:

— Tu só queres proteger o teu futuro, Sara. Não fizeste nada de mal.

Mas será mesmo assim? Ou será egoísmo querer garantir algo só para mim?

Os dias passaram e a relação com a avó ficou fria. Já não havia bolos quentes ao lanche nem conversas demoradas na cozinha. Sentia-a distante, magoada comigo.

Uma tarde, ao chegar lá, encontrei-a sentada na sala com um envelope na mão.

— Sara… — chamou-me baixinho. — Senta-te aqui.

Sentei-me ao lado dela no sofá antigo onde tantas vezes adormeci em criança.

— Estive a pensar muito no que me pediste — começou ela. — E percebi que tenho medo de te perder se fizer isto… ou se não fizer.

Ela entregou-me o envelope. Dentro estava uma carta escrita à mão:

“Querida Sara,
Se estás a ler isto é porque já não estou contigo. Quero que saibas que foste sempre a luz da minha vida e que esta casa é tão tua como minha. Mas também é dos teus tios, mesmo que eles não tenham estado presentes como tu estiveste. Peço-te apenas uma coisa: protege esta casa como eu tentei proteger-te a ti.
Com amor,
Avó Maria”

Chorei como há muito tempo não chorava. Abracei-a com força e pedi-lhe desculpa por tudo.

— Não quero nada sem ti aqui dentro desta casa — disse-lhe entre soluços.

Ela sorriu e acariciou-me o cabelo como fazia quando era pequena.

— O amor vale mais do que qualquer parede ou telhado, Sara.

Hoje olho para trás e pergunto-me: será errado querer proteger aquilo que amamos? Ou será egoísmo tentar garantir um futuro seguro quando isso pode magoar quem mais gostamos? E vocês? Já passaram por algo assim nas vossas famílias?