O Dia em que o Meu Pai Recusou-se a Pagar o Meu Vestido de Noiva
— Neva, não podes estar a falar a sério… — A voz do meu pai, Joaquim, ecoou pelo provador, carregada de incredulidade e uma ponta de raiva que nunca lhe conheci.
Eu estava ali, diante dele, com o vestido de noiva que sempre sonhei. Rendas delicadas, um véu que parecia feito de nuvens, e um sorriso nervoso que se desfez assim que vi a expressão dele. O silêncio da funcionária da loja era ensurdecedor. Senti-me exposta, como se toda a loja estivesse a assistir ao nosso drama.
— Pai… — tentei começar, mas ele levantou a mão, interrompendo-me.
— Não me peças para pagar por isto. Não depois do que fizeste. — O olhar dele era duro, mas havia algo mais: mágoa. Uma mágoa antiga, que eu pensava já ter cicatrizado.
A funcionária tossiu discretamente. — Se quiserem um momento a sós…
— Não é preciso — respondeu ele, sem desviar os olhos de mim. — Isto é entre mim e a minha filha.
Senti as lágrimas a ameaçarem cair. O vestido parecia agora pesar toneladas. Lembrei-me de todas as discussões em casa desde que anunciei o casamento com o Rui. O meu pai nunca gostou dele. Dizia que era um sonhador, que não tinha futuro. A minha mãe, Teresa, tentava apaziguar as coisas, mas acabava sempre a chorar no quarto.
— Pai, eu amo o Rui. Ele faz-me feliz. — A minha voz saiu trémula.
— Felicidade? Achas que isso paga contas? Achas que isso te vai proteger quando ele te deixar sozinha com filhos para criar? — O tom dele era quase um grito sussurrado.
A funcionária afastou-se discretamente. Fiquei ali, sozinha com o meu pai e os nossos fantasmas.
— Não é justo — murmurei. — Sempre disseste que querias ver-me feliz.
Ele passou as mãos pelo cabelo grisalho, visivelmente cansado.
— Eu queria… Quero… Mas não assim. Não deste modo. — Fez uma pausa longa. — Sabes quanto custa este vestido? Sabes quantas noites a tua mãe passou acordada a fazer contas para te dar tudo?
Senti-me pequena. Lembrei-me das noites em que ouvia os meus pais discutirem baixinho sobre dinheiro. Da vez em que a luz quase foi cortada porque não havia para pagar tudo.
— Eu posso ajudar a pagar… — tentei argumentar.
— Com quê? Com o ordenado do café? Ou vais pedir ao Rui? — O sarcasmo dele doeu mais do que qualquer bofetada.
O silêncio instalou-se entre nós. Olhei para o espelho e vi uma rapariga perdida, dividida entre o amor pelo pai e pelo homem com quem queria casar.
— Pai… — sussurrei. — Por favor…
Ele suspirou fundo e virou costas.
— Quando cresceres, vais perceber. — E saiu da loja sem olhar para trás.
Fiquei ali, sozinha no provador, com as lágrimas finalmente a cair. A funcionária voltou e pousou uma mão leve no meu ombro.
— Às vezes os pais só querem proteger-nos…
Assenti em silêncio, mas dentro de mim crescia uma revolta antiga. Porque é que nunca podia ser simples? Porque é que o amor tinha de ser uma batalha?
Saí da loja sem vestido e sem pai ao meu lado. Liguei à minha mãe, contei-lhe tudo entre soluços. Ela chorou comigo ao telefone.
— O teu pai tem medo de te perder, Neva… — disse ela. — Ele nunca soube lidar com mudanças.
Naquela noite, o jantar foi um silêncio pesado. O meu pai não me olhou uma única vez. A minha mãe tentou sorrir, mas os olhos estavam vermelhos.
No dia seguinte, o Rui apareceu em minha casa com um ramo de flores baratas e um sorriso triste.
— O teu pai nunca vai aceitar-me, pois não? — perguntou ele.
Sentei-me ao lado dele no muro do quintal.
— Não sei… Talvez nunca aceite nada do que eu faço.
Ele pegou na minha mão.
— Podemos casar-nos só nós dois. Não precisamos de vestidos caros nem festas grandes.
Olhei para ele e vi sinceridade nos olhos castanhos. Mas também vi medo. Medo de não sermos suficientes um para o outro contra o mundo inteiro.
Na semana seguinte, tentei falar com o meu pai várias vezes. Ele evitava-me, refugiando-se na garagem ou saindo cedo para o trabalho na fábrica.
Uma noite, ouvi-o discutir com a minha mãe:
— Ela vai arrepender-se! Vais ver! — gritava ele.
— Joaquim, ela é nossa filha! Só quer ser feliz!
— Felicidade não enche barriga!
Tapei os ouvidos com a almofada e chorei baixinho.
O tempo passou devagar até ao dia do casamento civil. Fomos só eu, o Rui e a minha mãe à conservatória. O meu pai não apareceu. Tirei uma foto com a minha mãe à porta do edifício antigo e sorri para esconder a dor.
No regresso a casa, encontrei o meu pai sentado à mesa da cozinha, olhar perdido na chávena de café frio.
— Parabéns — disse ele sem emoção.
Sentei-me à frente dele.
— Gostava que tivesses estado lá…
Ele não respondeu. Ficámos ali em silêncio até a minha mãe entrar e começar a preparar o jantar como se nada fosse.
Os meses seguintes foram difíceis. Eu e o Rui alugámos um pequeno apartamento nos subúrbios de Lisboa. O dinheiro mal chegava para as contas. Trabalhei horas extra no café; ele fazia biscates onde podia.
Às vezes discutíamos por coisas pequenas: quem lavava a loiça, quem pagava a renda este mês. Mas havia amor. E havia esperança.
No Natal desse ano, decidi visitar os meus pais sozinha. Levei um bolo feito por mim e um presente barato para cada um.
O meu pai abriu a porta e olhou-me como se eu fosse uma estranha.
— Olá, pai…
Ele afastou-se para eu entrar sem dizer palavra.
Durante o jantar, tentei puxar conversa:
— O Rui manda cumprimentos…
O meu pai resmungou qualquer coisa ininteligível.
Depois do jantar, sentei-me ao lado dele na sala enquanto via futebol na televisão.
— Pai…
Ele suspirou alto e baixou o volume da televisão.
— Eu só queria proteger-te — disse finalmente. — Não queria ver-te sofrer como eu vi a tua mãe sofrer quando éramos novos…
Olhei para ele e vi lágrimas nos olhos dele pela primeira vez desde que me lembro.
— Eu sei… Mas preciso de fazer as minhas escolhas. Preciso de viver a minha vida, mesmo que erre.
Ele assentiu devagar e apertou-me a mão com força.
Naquele momento percebi: às vezes os pais amam-nos tanto que esquecem como é ser jovem e sonhar alto demais.
Hoje olho para trás e pergunto-me: será que algum dia vamos conseguir perdoar verdadeiramente quem nos magoa por amor? Ou será esse perdão apenas mais uma ilusão bonita?