O Dia em que Descobri o Casamento do Meu Filho Pelo Vizinho
— Como assim, o Miguel vai casar? — A voz da Dona Graça ecoou no corredor do prédio, enquanto eu, de sacola na mão, tentava processar o que acabara de ouvir. O chão fugiu-me dos pés. O Miguel, o meu filho, o meu único filho, ia casar-se e eu soube-o pela boca da vizinha do terceiro esquerdo, entre duas conversas sobre o preço do peixe e a chuva que não dava tréguas.
Fechei a porta de casa com as mãos a tremer. O silêncio da sala parecia zombar de mim. Sentei-me no sofá, afundei o rosto nas mãos e chorei. Chorei como nunca tinha chorado desde que o Miguel era pequeno e caiu da bicicleta, com o joelho esfolado e os olhos cheios de lágrimas. Mas agora era diferente. Agora era eu quem estava magoada.
O telefone estava ali, a dois passos. Podia ligar-lhe. Podia exigir uma explicação. Mas não consegui. O orgulho, ou talvez o medo de ouvir uma verdade que me magoasse ainda mais, prendeu-me ao sofá. O relógio marcava as horas devagar, como se gozasse com a minha ansiedade.
A noite caiu e com ela vieram as memórias. O Miguel sempre foi um bom rapaz, mas desde que começou a namorar a Andreia, afastou-se. Primeiro foram os jantares de domingo que deixou de vir, depois as chamadas que se tornaram cada vez mais raras. Eu tentava não ser aquela mãe chata, mas sentia-o a escapar-me por entre os dedos.
No dia seguinte, acordei com os olhos inchados e uma decisão tomada: ia falar com a Andreia. Se o Miguel não tinha coragem de me contar, ela havia de ter. Vesti o casaco mais quente que tinha e saí de casa determinada.
O prédio dela ficava do outro lado da cidade, em Benfica. O caminho pareceu-me interminável. Cada paragem do autocarro era um ensaio mental do que lhe ia dizer. “Andreia, porque é que não me contaste?”, “O que é que eu fiz para merecer isto?”, “O Miguel tem vergonha de mim?”.
Toquei à campainha com as mãos frias. Ela abriu a porta com um sorriso forçado.
— Olá, Dona Carlota… — disse ela, usando aquele diminutivo que sempre me irritou.
— Podemos falar? — perguntei, sem rodeios.
Sentámo-nos na cozinha dela, entre chávenas de café e migalhas de bolo seco.
— Andreia, soube pelo vizinho que vocês vão casar — comecei, tentando controlar a voz trémula. — Porque é que ninguém me disse nada?
Ela baixou os olhos para as mãos.
— Dona Carlota… Eu queria muito que soubesse por nós. Mas o Miguel achou melhor esperar… Disse que não queria magoá-la.
— Não magoar-me? — interrompi, sentindo a raiva subir-me à garganta. — E acham que isto não magoa? Saber pela vizinha? Eu sou mãe dele!
Ela suspirou.
— Ele sente-se pressionado… Diz que nunca consegue agradar-lhe. Que tudo o que faz está errado aos seus olhos.
As palavras dela bateram-me como bofetadas. Eu? Eu só queria o melhor para ele! Sempre quis! Mas será que me tornei aquela mãe sufocante de quem ele foge?
— Eu só queria fazer parte da vida dele — sussurrei, sentindo as lágrimas ameaçarem cair outra vez.
Andreia levantou-se e pousou uma mão no meu ombro.
— Dona Carlota… Ele ama-a muito. Só tem medo de desiludi-la.
Ficámos ali em silêncio durante uns minutos. O cheiro do café misturava-se com a tristeza no ar.
— E agora? — perguntei finalmente.
— O casamento vai ser simples… Só para a família mais próxima. Mas claro que está convidada. Não faria sentido sem si.
Saí dali sem saber se me sentia melhor ou pior. O caminho para casa foi um turbilhão de pensamentos: onde é que falhei? Será que fui demasiado exigente? Será que devia ter dado mais espaço ao Miguel?
Quando cheguei ao prédio, encontrei a Dona Graça à porta.
— Então, já falou com eles? — perguntou ela, curiosa como sempre.
Assenti com a cabeça e forcei um sorriso.
— Falei… Parece que afinal ainda sou família.
Subi as escadas devagar. Cada degrau era um peso no peito. Entrei em casa e sentei-me outra vez no sofá onde tudo começara. Olhei para as fotografias do Miguel espalhadas pela sala: o primeiro dia de escola, o Natal em família, as férias na Nazaré.
Peguei no telefone e marquei o número dele. A voz dele soou hesitante do outro lado.
— Mãe?
— Miguel… Podemos falar?
Houve um silêncio breve antes dele responder:
— Claro, mãe.
Respirei fundo.
— Só quero que sejas feliz… Mas gostava de fazer parte dessa felicidade também.
Do outro lado ouvi um soluço abafado.
— Desculpa, mãe… Tive medo de te magoar. Achei que ias ficar triste por eu estar a seguir a minha vida…
— Triste fico se te perder — respondi baixinho.
Ficámos ali ao telefone durante minutos intermináveis, dizendo tudo o que nunca tínhamos tido coragem de dizer cara a cara. No fim, prometeu vir jantar comigo no domingo seguinte — como nos velhos tempos.
Naquele dia percebi que ser mãe é aceitar deixar ir, mas nunca deixar de amar. Que às vezes magoamos sem querer e somos magoados sem razão aparente. Mas também percebi que há sempre tempo para recomeçar.
Agora pergunto-me: quantas mães e filhos vivem presos neste silêncio doloroso? Quantos segredos se escondem atrás das portas fechadas das nossas casas portuguesas? E será que algum dia aprendemos mesmo a falar do que dói?