O Ato Imperdoável: A Jornada de Inês até ao Divórcio

— Inês, por favor, não faças isto! — A voz do Miguel ecoava pelo corredor, rouca, quase irreconhecível. Eu mantinha-me de pé, junto à mesa da sala, com as mãos a tremer enquanto segurava os papéis do divórcio. O cheiro a café frio misturava-se com o perfume dele, ainda pairando no ar desde aquela manhã em que tudo mudou.

Lembro-me de olhar para ele, ajoelhado no tapete, olhos vermelhos e mãos juntas como se rezasse. Mas eu já não sentia nada. Ou talvez sentisse tudo ao mesmo tempo: raiva, tristeza, desilusão. O silêncio era apenas interrompido pelo som dos papéis a serem folheados e pelo bater do meu coração acelerado.

— Não há nada que eu possa dizer? — insistiu ele, a voz embargada.

— Não — respondi, seca. — Já disseste tudo quando escolheste mentir-me durante meses.

O Miguel baixou a cabeça. Vi-lhe os ombros a tremerem. Por um instante, quase cedi. Lembrei-me do dia em que nos conhecemos na praia da Nazaré, das promessas trocadas ao luar, das noites em que sonhámos juntos com uma família. Mas depois veio a imagem da mensagem no telemóvel dele, aquela frase curta e devastadora: “Amo-te também.” Não era para mim.

A traição não foi apenas física. Foi o segredo, o afastamento, as desculpas esfarrapadas para chegar tarde a casa. Foi o olhar vazio durante o jantar de aniversário da nossa filha, a Matilde, que agora dormia no quarto ao lado, alheia ao desmoronar do mundo dos pais.

— Inês, eu juro que foi um erro… Eu amo-te! — Ele levantou-se de repente e agarrou-me nos braços. Senti-lhe o cheiro a tabaco e perfume barato. Afastei-o com força.

— Não me toques! — gritei, surpreendendo-me com a minha própria voz. — Tu destruíste tudo!

As lágrimas começaram a correr-me pelo rosto. O Miguel recuou, como se tivesse levado um murro no estômago. Olhou para mim como se me visse pela primeira vez.

— E a Matilde? Vais mesmo separar-nos? Vais mesmo fazer isto à nossa filha?

A culpa apertou-me o peito. Pensei na Matilde, nos seus olhos grandes e inocentes, na forma como corria para os braços do pai todas as manhãs. Mas lembrei-me também das noites em que me encolhia na cama, sozinha, enquanto ele dizia que estava “a trabalhar até tarde”.

— A Matilde merece pais honestos — disse eu, tentando controlar a voz. — E eu mereço respeito.

O Miguel virou costas e atirou um copo contra a parede. O estilhaçar do vidro fez-me estremecer. Senti medo — não dele, mas do futuro incerto que me esperava.

Na manhã seguinte, acordei cedo. O Miguel dormia no sofá, rodeado de garrafas vazias. Preparei o pequeno-almoço para a Matilde em silêncio. Quando ela entrou na cozinha, sorriu-me com aquela alegria pura que só as crianças têm.

— Mamã, hoje posso levar o meu urso para a escola?

Abracei-a com força.

— Claro que sim, meu amor.

Enquanto ela comia cereais distraída com os desenhos animados, sentei-me à mesa e olhei para os papéis do divórcio. A caneta pesava-me na mão. Assinar aqueles papéis era como fechar uma porta atrás de mim — uma porta que nunca mais se abriria.

O Miguel acordou pouco depois. Olhou para mim com olhos inchados e voz rouca:

— Vais mesmo fazer isto?

Assinei.

Os dias seguintes foram um turbilhão de emoções e burocracias. A minha mãe ligava-me todos os dias:

— Inês, tens a certeza? O casamento é para toda a vida… E a Matilde?

O meu pai nem falava comigo. Limitava-se a olhar-me com aquele ar de quem desaprova tudo o que faço desde os meus quinze anos.

No trabalho, os colegas cochichavam quando eu passava. A Carla tentou animar-me:

— Vais ver que tudo passa… Os homens são todos iguais!

Mas eu sabia que não era só isso. Era o fim de um sonho construído a dois. Era o medo de enfrentar o mundo sozinha com uma filha pequena. Era o peso das expectativas da família e da sociedade portuguesa, onde ainda se olha de lado para uma mulher divorciada.

Numa noite chuvosa, depois de deitar a Matilde, sentei-me no sofá escuro da sala e chorei como nunca tinha chorado antes. Senti-me vazia, perdida. Peguei no telemóvel e escrevi uma mensagem à minha irmã:

“Preciso de ti.”

A Ana chegou meia hora depois, encharcada da chuva.

— Inês… — abraçou-me sem dizer mais nada.

Ficámos assim muito tempo. Depois ela disse:

— Não tens de ser forte sempre. Eu estou aqui.

Aquelas palavras foram um bálsamo para o meu coração ferido.

Os meses passaram devagar. O Miguel tentou voltar várias vezes. Mandava flores para casa, escrevia cartas cheias de promessas vazias.

Um dia apareceu à porta com um presente para a Matilde.

— Só quero vê-la — disse ele.

Deixei-o entrar. Vi-os brincar juntos na sala e senti uma dor aguda no peito. Quando ele se foi embora, a Matilde perguntou:

— Porque é que o papá já não dorme cá?

Abracei-a e tentei explicar-lhe com palavras simples aquilo que nem eu conseguia entender totalmente.

— Às vezes as pessoas deixam de ser felizes juntas… Mas nós vamos ficar bem.

Ela olhou-me nos olhos e sorriu.

Os meus pais acabaram por aceitar a minha decisão, embora nunca tenham deixado de lamentar o fracasso do meu casamento.

Um dia encontrei o Miguel na rua com outra mulher. Ele desviou o olhar. Senti uma mistura estranha de alívio e tristeza.

Agora vivo sozinha com a Matilde num pequeno apartamento em Lisboa. Trabalho muito para pagar as contas e dar-lhe tudo o que posso. Às vezes sinto falta do passado — ou talvez só da ilusão de segurança que ele me dava.

Mas aprendi a confiar em mim mesma. Aprendi que mereço respeito e amor verdadeiro.

À noite olho para a Matilde a dormir e pergunto-me: será que fiz o certo? Será que algum dia vou conseguir perdoar — não só ao Miguel, mas também a mim mesma?

E vocês? Acham que há atos verdadeiramente imperdoáveis? Ou será que todos merecemos uma segunda oportunidade?