Não Aguento Mais: Entre o Amor pela Minha Neta e o Esquecimento da Minha Filha

— Mãe, não te esqueças de ir buscar a Leonor à escola às três, está bem? Eu vou chegar tarde outra vez. — A voz da minha filha, Inês, ecoou fria pelo telefone, sem espaço para perguntas ou sequer um “como estás?”.

Desliguei devagar, olhando para a chávena de chá que já arrefecera. O relógio marcava 13h12. Tinha pouco menos de duas horas para preparar o lanche da Leonor, arrumar a casa e tentar, quem sabe, sentar-me cinco minutos no sofá sem adormecer de exaustão. Senti uma pontada no peito — não de doença, mas de tristeza.

Há anos que a minha vida se resume a isto: cuidar da Leonor, esperar por telefonemas apressados da Inês, ouvir promessas vazias de que “para a semana combinamos um café”, e depois nada. O silêncio do meu apartamento tornou-se tão familiar quanto o cheiro do detergente barato que uso para poupar uns trocos na reforma.

Lembro-me de quando a Inês era pequena. Tinha caracóis dourados e ria-se com facilidade. Corria para mim quando caía, gritava “mamã!” com uma urgência que me fazia sentir indispensável. Agora, sou apenas um número na lista de contactos dela — alguém que resolve problemas logísticos.

— Avó! — A voz da Leonor rompeu os meus pensamentos quando a fui buscar à escola. Os olhos dela brilharam ao ver-me, e o abraço apertado fez-me esquecer, por um instante, o vazio que me consome.

No caminho para casa, ela contou-me sobre a apresentação de ciências. Falou do medo de errar, do orgulho quando a professora elogiou o trabalho. Sorri e segurei-lhe a mão pequenina. Era por ela que eu continuava a levantar-me todos os dias.

Mas à noite, quando a Inês veio buscá-la — já depois das nove — nem entrou. Ficou à porta do prédio, com o carro ligado.

— Obrigada, mãe. Amanhã passo aí outra vez. — E foi só isso. Nem um beijo na testa da filha, nem um olhar para mim.

Fechei a porta devagar. O eco dos meus passos pelo corredor era ensurdecedor. Sentei-me na cama e chorei baixinho, para não assustar os vizinhos ou, pior ainda, para não me assustar a mim própria com o som da minha solidão.

Lembro-me do dia em que tudo mudou entre mim e a Inês. Ela tinha acabado de entrar na faculdade em Lisboa. Eu trabalhava num supermercado e fazia horas extra para pagar-lhe os livros. Um dia chegou tarde, olhos vermelhos, voz dura:

— Não quero que te metas mais na minha vida. Preciso do meu espaço.

Fiquei sem chão. Senti-me traída por aquela menina que criei sozinha depois do pai dela nos ter deixado. Aguentei tudo — noites sem dormir, febres altas, birras e choros — para ouvir aquilo? Desde então, as conversas tornaram-se cada vez mais raras e superficiais.

Quando nasceu a Leonor, pensei que tudo mudaria. Que talvez a maternidade fizesse a Inês perceber o quanto uma mãe pode amar uma filha. Mas não. Em vez disso, tornei-me ama a tempo inteiro.

— Mãe, preciso mesmo que fiques com ela esta semana toda. O Pedro foi viajar em trabalho e eu tenho reuniões até tarde…

Nunca me perguntou se eu tinha planos ou se estava cansada. Nunca quis saber se eu tinha dores nas costas ou se sentia falta de conversar com alguém da minha idade.

Os meus dias passaram a ser feitos de rotinas: acordar cedo para preparar o pequeno-almoço da Leonor, levá-la à escola, ir ao supermercado comprar o que falta (sempre tentando esticar a pensão), limpar a casa, buscar a Leonor, ajudá-la nos trabalhos de casa, dar-lhe banho e jantar… E esperar pela Inês.

Às vezes pergunto-me se falhei como mãe. Será que fui demasiado protetora? Ou demasiado ausente? Será que ela me culpa por ter crescido sem pai? Nunca tive coragem de perguntar.

Uma noite, depois de deitar a Leonor, sentei-me na varanda com um copo de vinho barato. Olhei para as luzes da cidade e pensei em como tudo podia ter sido diferente.

O telefone tocou. Era a minha irmã, Teresa.

— Milena, tens de falar com ela. Não podes continuar assim! Vais acabar doente…

— E se ela se afasta ainda mais? — respondi num sussurro.

— Mas já está afastada! — gritou Teresa do outro lado. — Tu mereces mais do que isto!

Desliguei sem responder. Fiquei ali sentada até sentir frio nos ossos.

No dia seguinte, decidi tentar falar com a Inês.

— Inês, precisamos conversar — disse-lhe quando veio buscar a Leonor.

Ela revirou os olhos.

— Agora não posso, mãe… Estou cheia de pressa.

— Por favor… Só cinco minutos.

Ela suspirou e entrou em casa pela primeira vez em semanas. Sentou-se à mesa como se estivesse numa reunião aborrecida.

— O que foi agora?

Senti as lágrimas ameaçarem cair mas engoli-as.

— Sinto falta de ti… Da nossa relação. Sinto-me sozinha, Inês. E às vezes parece que só sirvo para tomar conta da Leonor…

Ela ficou em silêncio durante uns segundos eternos.

— Mãe… Eu tenho uma vida muito complicada agora. Não percebes? Preciso de ti para me ajudar com a Leonor porque não tenho mais ninguém…

— E eu? Quem é que cuida de mim?

Ela levantou-se bruscamente.

— Não tenho tempo para isto! — pegou na Leonor pela mão e saiu porta fora sem olhar para trás.

Fiquei ali sentada à mesa vazia durante muito tempo. O cheiro do arroz queimado no fogão encheu a cozinha antes de eu conseguir levantar-me para desligar o lume.

Nos dias seguintes tentei ser forte por fora e invisível por dentro. Continuei a cuidar da Leonor como sempre — ela era o meu raio de sol nos dias cinzentos. Mas cada vez que via a Inês afastar-se mais um pouco, sentia-me morrer por dentro.

Uma tarde chuvosa, enquanto ajudava a Leonor com os trabalhos de casa, ela olhou para mim com aqueles olhos grandes e sérios:

— Avó… Porque é que a mamã está sempre triste?

Engoli em seco.

— Às vezes os adultos ficam tristes porque têm muitas coisas na cabeça… Mas tu não tens culpa nenhuma disso, meu amor.

Ela abraçou-me com força e senti uma lágrima quente escorrer pela minha face enrugada.

À noite escrevi uma carta à Inês. Não tive coragem de lha entregar:

“Filha,
Sei que estás cansada e sobrecarregada. Eu também estou. Sinto falta da nossa ligação, das conversas sem pressa e dos abraços apertados. Não quero ser apenas uma solução prática na tua vida; quero ser tua mãe outra vez. Se algum dia quiseres conversar — mesmo que seja só para chorar juntas — estarei aqui. Sempre tua mãe,
Milena”

Guardei a carta na gaveta da mesa-de-cabeceira e adormeci com ela no pensamento.

Hoje escrevo esta história porque sei que não sou a única mãe ou avó nesta situação. Quantas de nós vivem entre o amor incondicional pelos netos e o esquecimento dos filhos? Quantas vezes calamos as nossas dores para não incomodar?

Às vezes pergunto-me: será que algum dia vou voltar a ser vista como mãe? Ou estou condenada a ser apenas uma sombra útil na vida da minha filha?

E vocês? Já sentiram este vazio? Como é possível amar tanto e sentir-se tão invisível?