Expressões Silenciosas de Amor: Entre o Silêncio e o Grito do Coração
— Não vás agora, por favor! — sussurrei, quase sem voz, enquanto via o meu pai fechar a porta com força. O eco do trinco ainda vibrava nas paredes frias da nossa casa em Coimbra. Tinha doze anos e já sabia que ali, naquele silêncio pesado, morava tudo o que nunca foi dito entre nós.
A minha mãe, Maria do Carmo, era uma mulher de poucas palavras e muitos gestos. O meu pai, António, era um homem de trabalho duro, sempre ausente, mas com um olhar que me despia a alma quando chegava tarde da noite. Cresci entre eles, tentando decifrar os códigos secretos do seu amor. Nunca ouvi um “amo-te” entre eles. Nem para mim. Mas havia sempre um prato de sopa quente à espera, um cobertor puxado até ao queixo nas noites frias e um olhar demorado quando achavam que eu não via.
Lembro-me de um Natal em que o meu pai chegou mais cedo. Eu estava a montar o presépio com a minha mãe. Ele entrou, pousou o chapéu e ficou a olhar para nós. Não disse nada. Apenas se ajoelhou ao meu lado e ajudou-me a colocar o Menino Jesus no centro. Senti uma mão pesada pousar no meu ombro. Foi nesse momento que percebi: aquele gesto era o seu “amo-te”.
Mas nem sempre os gestos bastam. Quando fiz quinze anos, apaixonei-me pela primeira vez. O Miguel era meu colega de turma e tinha um sorriso fácil. Um dia, depois das aulas, ofereceu-me uma flor silvestre que tinha apanhado no caminho. Fiquei sem saber o que dizer. Guardei a flor entre as páginas do meu diário e escrevi: “Será isto amor?”.
O tempo passou e o Miguel tornou-se mais do que um amigo. Mas nunca me disse que gostava de mim. Em vez disso, esperava por mim à porta da escola nos dias de chuva, partilhava o lanche comigo e ria das minhas piadas sem graça. Eu queria ouvir as palavras mágicas, mas ele só me dava silêncios cheios de significado.
Em casa, as coisas começaram a mudar. O meu pai perdeu o emprego na fábrica de cerâmica. A tensão cresceu como uma nuvem negra sobre nós. As discussões entre ele e a minha mãe tornaram-se mais frequentes, mas sempre abafadas atrás das portas fechadas do quarto. Eu ouvia tudo: os sussurros furiosos, os soluços contidos da minha mãe e o silêncio ensurdecedor do meu pai quando saía para fumar no quintal.
Uma noite, não aguentei mais e fui ter com ele ao jardim.
— Pai… — comecei, mas ele interrompeu-me com um gesto brusco.
— Vai para dentro, Inês. Isto não é conversa para ti.
Mas eu fiquei ali, parada, sentindo o cheiro a terra molhada e tabaco barato.
— Porque é que nunca falamos? Porque é que nunca me dizes nada? — perguntei, a voz embargada.
Ele olhou-me nos olhos pela primeira vez em muito tempo.
— Há coisas que não precisam de ser ditas, filha.
Voltei para dentro com o coração apertado. Queria gritar, queria ouvir um “gosto de ti”, queria sentir que era amada não só pelos gestos mas também pelas palavras.
O Miguel acabou por se afastar. Um dia deixou de esperar por mim à porta da escola. Soube depois que tinha mudado de cidade com os pais. Fiquei com a flor seca no diário e uma saudade muda no peito.
Os anos passaram e fui estudar para Lisboa. A distância trouxe-me liberdade mas também solidão. Nas chamadas semanais com a minha mãe, ela perguntava sempre se eu estava a comer bem e se dormia o suficiente. Nunca perguntava se estava feliz.
No segundo ano da faculdade conheci a Joana. Tornámo-nos inseparáveis. Ela era tudo o que eu não era: expansiva, barulhenta, cheia de vida. Um dia confidenciei-lhe:
— Nunca ouvi os meus pais dizerem que me amam.
Ela riu-se:
— Isso é tão português! Lá em casa é igual… Mas sabes? Às vezes um abraço vale mais do que mil palavras.
Comecei a reparar nos pequenos gestos à minha volta: o colega de casa que me deixava café feito de manhã, a vizinha idosa que me oferecia bolinhos caseiros quando passava no corredor.
Mas havia um vazio dentro de mim que nem todos os gestos conseguiam preencher.
No último ano da faculdade recebi uma chamada da minha mãe:
— O teu pai está doente… — disse ela, a voz trémula.
Voltei para Coimbra sem pensar duas vezes. O meu pai estava magro, envelhecido, mas os olhos continuavam os mesmos: profundos e silenciosos.
Durante semanas cuidei dele ao lado da minha mãe. Nunca falámos sobre sentimentos ou medos. Apenas partilhámos silêncios longos à beira da cama dele.
Na véspera do seu último aniversário, sentei-me ao lado dele e segurei-lhe a mão.
— Pai… — sussurrei — gostava tanto que me dissesses alguma coisa…
Ele apertou-me os dedos com força e olhou-me nos olhos:
— Inês… — murmurou — desculpa se nunca soube dizer as coisas certas… Mas tu és tudo para mim.
Chorei como nunca tinha chorado antes. Naquele instante percebi que todo o amor estava ali, condensado naquele aperto de mão e nessas poucas palavras arrancadas ao silêncio de uma vida inteira.
O meu pai partiu nessa noite.
Depois do funeral, sentei-me no quarto dele e encontrei uma caixa cheia de cartas nunca enviadas — cartas para mim, para a minha mãe, até para o Miguel! Palavras escritas mas nunca ditas. Li cada uma delas com lágrimas nos olhos e um sorriso triste nos lábios.
Hoje vivo em Lisboa com a Joana — agora minha companheira — e tento todos os dias quebrar o ciclo do silêncio. Digo “amo-te” sempre que posso, abraço sem motivo e escrevo bilhetes espalhados pela casa.
Mas pergunto-me muitas vezes: será que os gestos silenciosos são suficientes? Ou precisamos todos de ouvir as palavras certas antes que seja tarde demais?
E vocês? Acham que o amor se sente mais nos gestos ou nas palavras? Quantas vezes deixámos passar um “amo-te” por medo ou vergonha?