Estranhos à Porta: Uma Noite que Mudou Tudo
— Quem é? — perguntei, com a voz trémula, enquanto olhava pelo óculo da porta. Do outro lado, uma mulher de meia-idade, com o cabelo molhado pela chuva, segurava uma criança ao colo. Atrás dela, um homem franzino batia com força na madeira, impaciente.
— Por favor, abra! — insistiu a mulher, os olhos suplicantes fixos na minha porta. — Este apartamento é nosso! O senhorio disse que podíamos entrar hoje!
O meu coração disparou. O relógio marcava quase onze da noite. Eu estava sozinha, enrolada numa manta no sofá, a ver um filme para tentar esquecer o dia difícil no escritório de advogados onde trabalho. Nunca imaginei que aquela noite se transformaria num pesadelo.
Respirei fundo e tentei manter a calma. — Desculpe, mas este apartamento está arrendado por mim há quase um ano. Não recebi qualquer aviso do senhorio sobre visitas ou mudanças.
O homem aproximou-se ainda mais da porta. — Chamo-me António. Falei com o senhor Manuel esta manhã. Ele garantiu-me que o apartamento estava livre e que podíamos mudar-nos hoje. Temos as malas lá em baixo! — A voz dele tremia entre raiva e desespero.
Senti um nó no estômago. O senhor Manuel era o meu senhorio, um homem idoso que raramente atendia o telefone e que, nos últimos meses, se mostrava cada vez mais esquivo quanto ao contrato de renovação. Lembrei-me das mensagens não respondidas e das promessas vagas: “Depois falamos disso, menina Sofia”.
— Não posso abrir a porta — respondi, tentando soar firme. — Vou ligar ao senhor Manuel agora mesmo para esclarecer isto.
Ouvi a criança começar a chorar baixinho. A mulher murmurou algo para o filho e olhou para mim com uma expressão de súplica. — Por favor… está frio lá fora. Só queremos entrar para descansar um pouco. O senhorio prometeu…
Afastei-me da porta e peguei no telemóvel com as mãos a tremer. Liguei ao senhor Manuel três vezes. Nada. Enviei-lhe uma mensagem: “Sr. Manuel, está uma família à porta a dizer que tem autorização para entrar no apartamento. O que se passa? Preciso de resposta urgente.” Sentei-me no chão do corredor, encostada à parede, ouvindo os murmúrios do outro lado da porta.
A minha cabeça fervilhava de perguntas: E se fosse verdade? E se o senhorio tivesse feito um novo contrato sem me avisar? E se aquela família estivesse mesmo sem abrigo? Mas… e se fosse tudo mentira? E se fosse um esquema para me assaltar?
A campainha voltou a tocar insistentemente. Senti o pânico a crescer dentro de mim. Liguei à minha mãe em Setúbal.
— Mãe… há pessoas à porta do apartamento a dizer que têm autorização para entrar… Não sei o que fazer!
— Não abras a porta, Sofia! — respondeu ela, alarmada. — Liga à polícia se for preciso! Não confies em ninguém!
Olhei para as fotografias na parede: eu e os meus pais na praia da Comporta; eu e o meu irmão Tiago no aniversário dele, antes de ele emigrar para Inglaterra. Senti-me tão sozinha naquele momento.
Do outro lado da porta, ouvi o homem falar ao telemóvel:
— Sim, senhor Manuel… mas ela não abre! Está aqui dentro e diz que arrendou o apartamento… Como assim? Então onde é que ficamos esta noite?
O sangue gelou-me nas veias. Afinal estavam mesmo em contacto com ele? Ou era só teatro?
A mulher bateu levemente na porta:
— Sofia… por favor… temos uma criança pequena… só queremos descansar até amanhã…
Ouvia-se o choro abafado do menino. O meu coração apertou-se de compaixão, mas o medo era mais forte.
De repente, lembrei-me do vizinho do lado, o senhor Joaquim, reformado da Carris, sempre atento ao que se passava no prédio. Abri devagarinho a porta do corredor e bati à porta dele.
— Oh menina Sofia! Que se passa? — perguntou ele, surpreendido pelo meu ar pálido.
Expliquei-lhe tudo em sussurros apressados. Ele franziu o sobrolho.
— Olhe, eu vou lá falar com eles. Fique aqui atrás de mim.
O senhor Joaquim abriu a porta do meu apartamento com autoridade:
— Então o que é isto? Quem são vocês?
O homem explicou tudo outra vez, mostrando até uma mensagem no telemóvel supostamente enviada pelo senhor Manuel: “Podem ir hoje à noite para o apartamento da Sofia. Está tudo tratado.” O senhor Joaquim olhou para mim, desconfiado.
— Isto cheira-me a esturro… O Manuel anda metido em sarilhos há meses. Já ouvi dizer que anda a arrendar quartos em duplicado…
A mulher começou a chorar baixinho:
— Não temos para onde ir… O nosso contrato acabou ontem e ele prometeu-nos este sítio…
Senti-me dividida entre a compaixão e a raiva pelo senhorio. Como podia alguém brincar assim com as vidas das pessoas?
O senhor Joaquim sugeriu chamar a polícia para esclarecer tudo. Eu hesitei, mas acabei por concordar. Liguei para o 112 com as mãos geladas.
Enquanto esperávamos, tentei acalmar-me. O menino adormeceu nos braços da mãe, enrolado num casaco demasiado fino para aquela noite húmida de Lisboa.
Quando os agentes chegaram, ouviram ambas as versões e pediram os contratos de arrendamento. Mostrei-lhes o meu; António mostrou apenas as mensagens trocadas com o senhor Manuel.
— Infelizmente, sem contrato válido não podem entrar — explicou um dos polícias à família. — Vão ter de procurar outro alojamento esta noite.
A mulher desatou a chorar convulsivamente. O marido olhou para mim com ódio nos olhos.
— Isto não é justo! — gritou ele. — O Manuel enganou-nos! E vocês todos compactuam!
Senti-me miserável. Queria poder ajudar, mas também tinha medo de perder o meu lar ou de ser enganada.
Os polícias acompanharam-nos até à rua e sugeriram-lhes procurar abrigo temporário junto da Santa Casa da Misericórdia ou dos serviços sociais da Câmara Municipal.
Quando fechei finalmente a porta atrás de mim, desabei no chão da cozinha e chorei como há muito não chorava.
Na manhã seguinte, liguei novamente ao senhor Manuel. Desta vez atendeu:
— Oh menina Sofia… foi um mal-entendido! Eu pensava que ia sair este mês…
— Mal-entendido? — gritei-lhe ao telefone. — Pôs uma família na rua! E quase me pôs em perigo!
Ele suspirou:
— Eu já estou velho para estas confusões… Desculpe lá…
Desliguei-lhe na cara.
Durante dias não consegui dormir bem. Sempre que ouvia passos no corredor, pensava que podia ser outra família enganada pelo senhorio ou alguém zangado à procura de justiça pelas próprias mãos.
Contei tudo à minha amiga Marta no café:
— Sabes que mais? Isto podia ter acabado muito mal…
Ela abanou a cabeça:
— Em Lisboa está cada vez pior arranjar casa decente… E há sempre alguém pronto a aproveitar-se dos mais frágeis.
No trabalho andava distraída; os colegas notaram o meu ar ausente.
Uma semana depois recebi uma carta registada: o senhor Manuel queria rescindir o contrato comigo também. “Preciso do apartamento para familiares”, dizia ele secamente.
Senti-me traída e furiosa. Liguei ao meu irmão Tiago em Londres:
— Estou farta disto tudo! Porque é que em Portugal é tão difícil ter segurança até num simples lar?
Ele tentou animar-me:
— Vem para cá uns tempos… Aqui também não é fácil, mas pelo menos não tens estes sustos…
Pensei nisso durante dias. Mas Lisboa era a minha casa; não queria desistir assim tão facilmente.
Procurei advogados especializados em arrendamento e descobri que não estava sozinha: dezenas de pessoas tinham passado por situações semelhantes com o mesmo senhorio.
Juntei-me a um grupo de inquilinos lesados e começámos a trocar histórias e estratégias legais para nos defendermos.
No final daquele mês tive de sair do apartamento onde vivi tantas alegrias e tristezas nos últimos anos. Levei comigo apenas as malas e uma sensação amarga de injustiça — mas também uma nova determinação: nunca mais deixaria que alguém brincasse assim com a minha vida.
Hoje olho para trás e pergunto-me: quantas pessoas terão passado por noites como aquela? Quantos lares são destruídos por ganância ou indiferença? E será que algum dia vamos aprender a proteger melhor quem só quer um lugar seguro para viver?